terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O MEU BAIRRO DAS FURNAS - VI

A minha mana foi responsável pela minha protecção e educação, quando miúdo, no espaço e no tempo do trabalho dos nossos pais. Encontramo-nos de tempos-a-tempos, se bem que lhe telefone amiúde, para saber do seu estado de saúde.

Rija como a nogueira, vencedora da mais cruel das doenças, sempre corajosa perante novas ameaças, mas a sua postura é triunfante. Sorridente, simpática, de coração sempre aberto, aos 77 anos de idade não deixou de ser uma mulher elegante e bonita. A sua presença e a sua beleza, registo com vaidade.

Não é natural do bairro, mas foram largos os anos que lá teve morada. Numa primeira vez, no velho bairro, por mais que uma década, em casa de minha mãe, com o seu marido e uma filhinha. Sai do bairro para uma casa nos Restauradores com melhores condições de habitabilidade, tempos mais tarde nasce-lhe mais uma menina.

Os anos “voam” como flechas, as filhas casam e quando, na companhia do seu marido, regressa pela segunda vez para cuidar da nossa mãe, as casas que vieram substituir as do velho bairro, já estão prontas. Hoje, no bairro, mora sozinha com saudades dos que partiram.

Raul, onde vamos almoçar?
Diz tu Lena!
Olha; vamos ao Carvoeiro, come-se bem e não é caro.
Interrogo-me com o nome deste restaurante, é-me familiar, mas nada digo e deixo-me conduzir pela rua de S. Domingos de Benfica que, dá acesso à Estrada de Benfica e ao Palácio Fronteira, onde funcionava a antiga Escola Comercial Pedro Santarém.

Como eu recordo o passado! Nesta rua, em frente à Leitaria do “Manel”, a drogaria já não existe. Mais abaixo o barbeiro também não. Mas a tasca do carvoeiro, que tinha atrás do balcão o taberneiro velho e chato, resistiu.

Lembro-me do tasco, quando era encontro de muitos trabalhadores que, nos finais dos dias e dos seus trabalhos, por ali confraternizavam, ou num qualquer jogo de cartas. Não só vendia vinho como tinha acoplada uma carvoaria que, mais tarde, com o desacostume do uso do carvão, foi convertida em “salão” de jogos dos matraquilhos. Hoje, apresenta o mesmo visual quanto à tasca, mas o espaço interior, o velho salão dos matraquilhos, foi transformado num modesto restaurante – Adega S. Domingos – o “Carvoeiro” como lhe chamam os que por lá moram há muitos anos.

Sentado numa das mesas a saborear o ensopado de borrego, procurava responder à conversa com a minha irmã, mas ao mesmo tempo recordava com nostalgia, este espaço, outrora palco de grandes jogatinas. Nunca consegui meter os golos na baliza adversária como com a perícia do Beirão. E quando eu na defesa, este meu amigo, que não sei da sua sorte, fazia rolar as bolas entre os três primeiros jogadores e chutava-as, de tal forma rápida, que não conseguia aperceber-me de que lados entravam na baliza.

Eu e a minha heroína, confortados e de barriga cheia, subimos a Rua de S. Domingos em direcção ao Bairro. Na entrada, encontramos uma velhinha que me olha interrogada, mas de pronto esclarece a minha irmã. Este é o filho da Tia Georgina, é o meu irmão Raul. Pois é! Responde a sujeita que no mesmo tempo me dá dois calorosos beijos, não sem antes dizer - que saudades tenho da tua mãe - parece que a estou a ver no carnaval, mascarada e divertida com todos…hoje já nada disso se vê por aqui.

Na minha frente vejo um prédio, que me parece uma torre. Outrora era o edifício da praça, que na sua frente tinha um ajardinado e um pequeno largo. No lado oposto um outro edifício onde funciona o Centro Extra Escolar e a Mocidade Portuguesa.

Como eu me lembro da Carmen, que na praça vendia as frutas e as hortaliças!
A Carmen era uma senhora alta e de viva voz.
Anda cá Raul…leva isto que comprou a tua mãe…leva com cuidado filho, não estragues!
Do lado esquerdo, mais uma banca de frutas e legumes. Por detrás, a padaria e o talho. A pequena mercearia ficava no lado direito para quem entrasse na praça. O edifício era servido com 3 ou 4 degraus e 2 portas, largas e gradeadas, entre os pilares.

Em direcção à casa da minha acompanhante, paro no Largo que homenageia a D. Mª de Lurdes Pais Gomes, assistente social e mestra da Casa do Trabalho no bairro. Recordo as festas que me fazia quando na idade escolar. Tenho pena que ainda não se tenha alcançado igual reverência com as professoras primárias, em especial a D. Maria Helena.

Enxergo a correnteza das casas existentes rua abaixo – Rua Costa Mota – outrora o sítio da horta e dos viveiros para jardim que o Sr. Zé (o jardineiro) cuidava diariamente. “Vejo”, em frente da sebe, algumas das ruas do velho bairro. No regresso ao passado, “vejo” no meu lado esquerdo, não as novas casas, o parque infantil, mas sim a rua onde morava o Sr. Caixinha, revisor dos comboios da CP e na parte de baixo o Rabaloto. Logo a seguir, a rua do “super-rato”, do Francisco Lambuças, e do barbeiro. “Vejo” a minha rua, a dos Plátanos e, já no fundo da correnteza, no princípio da Rua dos Choupos, “vejo-me” apoiado no ripado do quintal da Amélia. Hoje é Largo Calouste Gulbenkian.

Ao despedir-me da minha irmã, deparo, com saúde, o Zé Silva e o Rabaloto. Chamei pela “Bigodes”, grande amiga da minha mãe e visitante assídua da minha velha casa. Não me ouviu ou não estava. Estará certamente para uma próxima visita, à minha querida irmã e às minhas origens.

Fotos: Com o devido respeito
Do Bairro novo – Google Earth
Do Bairro velho – Do livro O Nosso Bairro –
Mª de Lurdes Pais Gomes e da Comissão de Moradores