quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O BARBEIRO QUE TEM DE NOME MAS NÃO É DE SEVILHA Há muitos anos que a aldeia só tem um barbeiro. O existente, num raio de 15 quilómetros, dá pelo nome de Sevilha. A alcunha creio, foi por força da conhecida ópera, Barbeiro de Sevilha, e a similitude com a história de Fígaro. Este “baeta”, da nossa vizinha Espanha, fazia de “tudo”. Reza a história, (entre outros predicados), que atento as confissões de alguns clientes, passava-as a outros sem deixar de acrescentar mais um ponto, enfim… um verdadeiro prodígio não só na arte de barbear como também da imaginação. O nosso amigo barbeiro, talvez não (tenha) tivesse tantos “predicados”, mas pela analogia da profissão, da alcunha não se safou. Hoje, cá na terra, ninguém o trata pelo nome de batismo, Sevilha ficou. Vou ao seu encontro no modesto e pequeno salão de barbeiro, “anos 50”, situado na entrada da sua residência. Reparo que as paredes são amareladas pelo tempo. Observo que suportando os apetrechos da profissão, os móveis, de pintura castanha aqui-ali já polida, são pequenas gavetas suportados por estreitas poleias. Cadeira articulada necessariamente. Um ou outro calendário com a imagem de senhoras pró sensual fazem parte do layout. Vejo a sua mão estendida para cumprimento deste seu novo cliente. A cadeira de trabalho espera-me. O avental de serviço desse dia é-me colocado. Na minha frente, no espelho situado na parede, contemplo refletida a sua imagem com a tesoura e o pente na mão. Pergunta: Como quer o corte? Cheio respondi! Está bem, não precisa de dizer mais nada! Este meu “novo” barbeiro tem 76 anos de idade, de constituição magra e pequeno na altura. Enquanto me “tosquiava”, com ar semblante e curioso, perguntou: De férias? Mora onde? É familiar de quem? Respondi há sua curiosidade. Assegura, sorrindo, que eu tinha feito bem ao deslocar-me para a aldeia! Acrescenta, algo gabarola, que apesar da idade já avançada e das vicissitudes da vida, nunca esteve doente. Ficou admirado quando lhe disse que o seu “percurso” não me era totalmente desconhecido. Disseram-me que trabalhou nas barbearias mais chiques de Santarém. Que tinha sido treinador do Clube Vera Cruz Futebol. Uma outra paixão era colecionar bicicletas pasteleiras e automóveis em desuso. Ui meu amigo, não só Não só meu amigo retorquiu. Não só! A vida foi bem dura. Não fui bem-sucedido como imigrante na Alemanha. Fui longos anos maltês (*) numa quinta na periferia da aldeia. Ferrava pelas quatro horas da manhã para cuidar do rebanho de cabras que tinha agrupado com o gado do patrão. Quando o sol raiava era agarrar na motoreta e seguir para Santarém para responder à profissão de barbeiro que desde os 13 anos abracei. A vida foi bem dura para mim e para a Deolinda. A Deolinda era o nome da minha mulher. Choro todos os dias esta que foi a mulher da minha vida. Companheira sofrida. Mãe dos meus dois filhos. Essa do futebol é para esquecer, o Vera Cruz Futebol Clube foi um clube muito animado pela mocidade do Pombalinho. Foi fundado em 1933, ainda eu não era nascido. Passado cerca de uma década acabou. Renasceu anos mais tarde. Por volta dos anos 70 foi seu treinador. Era mais uma tarefa a juntar ao meu currículo profissional. Apesar de tudo, ainda tinha tempo para treinar a rapaziada. Mas tudo acaba. Quando larguei esta tarefa ao cabo de 12 anos, perto se desmoronou. Hoje só resta o campo de futebol e a maior parte rapaziada que formava o clube e a equipa. Mas você quer uma bicicleta para recuperar? Eu não vendo! Ofereço-a. Tenha um bom dia. Nota (*)Trabalhador agrícola que se desloca para trabalhar temporariamente fora da sua terra.