quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

HISTÓRIAS DO MEU BAIRRO DAS FURNAS VIII



SACOLA DE PANO Á TIRICOLO PARA APRENDER JUNTAR AS PRIMEIRAS LETRAS

Eu morava na Rua dos Plátanos. Rua situada ao fundo, do lado este, do meu Bairro das Furnas. A minha escola primária era fronteira à da escola das raparigas, por detrás da capela.
Esta igrejinha estava situada no ponto mais elevado deste meu Bairro. O seu acesso passava por subir uma longa escadaria feita com pedras de calçada de cor branca. Ladeada por vários ciprestes de delicado trato pelo jardineiro.

Um outro acesso à escola era subir por um carreiro junto às hortas que começava no terreno que chamávamos de “campo de futebol”. Era um espaço existente do lado esquerdo, por detrás e um pouco além do Salão de Festas. É hoje ocupado por prédios um pouco antes do chamado Bairro dos Sargentos.

No ano de 1952, no meu primeiro ano de aulas, recordo que a escola dos rapazes tinha 4 filas de carteiras, comportando as turmas da 1ª, 2ª, 3ª e da 4ª classe.
Recordo ainda que a secretária da mestra estava colocada num estrado que me parecia muito alto. Na parede, por detrás desta secretária, uma ardósia também enorme, não chegando, q
uando chamado a prestar exercícios, os meus pequeninos braços, mesmo em bico de pés, ao meio desse quadro.
Como a recordo a jovem e bonita professora, sobretudo quando a sua face se apresentava rosada não só por irritada com os seus alunos.

A DISCIPLINA E ESTUDO NA ESCOLA DO MEU BAIRRO

Em tempos idos, era habitual dizer-se quando uma criança revelava uma atitude
de rebeldia e se a pretendia rectificar com uns açoites, estes eram justificados pela frase “de pequenino é que se torce o pepino”. Na maior parte das vezes resultava.
Corria o ano de 1954. A primavera chegara. No final das aulas, os alunos das turmas da 1ª,
2ª e 3ª classes, sequencialmente e de forma ordeira, lá iam saindo. A professora, como de costume, assistia de pé, posicionada e vigilante na frente da sua secretária.
O… “até amanhã senhora professora”… era acompanhado, de quando em quando, com um aceno de cabeça da mestra, em jeito de concórdia.
O interesse dos rapazes com a passarada nesta época do ano, não raras as vezes equipados com as fisgas, visco e na procura dos ninhos, deu razões à professora para que os alunos da turma da 4ª classe ficassem mais um pouco na aula e sentados.
A mestra pretendia anunciar que, no dia seguinte seriam feitas perguntas sobre a importância e o comportamento das aves, procedimentos insertos num dado texto do livro de leitura para esta classe.
Recomendara bastante o seu estudo, uma vez que iriam reler este importante texto e seriam feitas perguntas às quais a turma tinha que prontamente responder.
Todos os rapazes saíram satisfeitos. A lição escolhida pareceu-lhes fácil. De pássaros e dos seus comportamentos não havia ninguém quem melhor os conhecessem. Consequentemente, o estudo da lição e as recomendações da senhora professora foram colocados como algo desnecessário por certezas mais que evidentes.

No dia seguinte, a mestra, no tempo do questionário verbal sobre a lição recomendada no dia anterior, apenas teve tempo para fazer a primeira pergunta, o resto do tempo foi destinado e ocupado por uma série de 3 reguadas em cada mão dos alunos da 4ª classe. Castigo infligido, pelo raciocínio ora confirmado, de que ninguém tinha estudado a lição como ela recomendara.
Mas que pergunta foi feita que os seus alunos da 4ª classe não souberam responder, ou melhor, que eles responderam rápido… mas erradamente? Simplesmente…de como se chamava…a fêmea do pardal…! A que todos “sabiamente” responderam…”pardala”…! Quando na verdade deviam ter respondido…pardaleja ou pardaloca...
“Pardala” não constava da lição nem sequer existia (existe) no dicionário da língua portuguesa.

DO ÓDI
O AO OLEO FIGADO DE BACALHAU…

Quem não se lembra daquela mistela castanha a que davam o nome de óleo fígado de bacalhau. O óleo fígado de bacalhau, era servido numa colher da sopa na cantina escolar antes das refeições dos alunos e, era tido e considerado como complemento alimentar.
Ao contrário de muitos outros alunos da minha escola, felizmente eu não passava fome! Os meus pais, muito pobres, procuraram sempre que o seu menino tivesse, em termos de alimentação, o melhor que a vida lhes permitia dar, mas longe de dispensarem as refeições que a escola oferecia aos seus alunos.
Se
era um facto que a sopa ingerida na escola era na grande parte das vezes bem-vinda, já não o era o óleo fígado de bacalhau.
Como eu recordo o sacrifício de tal ingestão. Quantas tentativas falhadas para fintar a contínua “carrasco” por tais obrigações. O processo alternativo era rapidamente comer de seguida 3 ou 4 colheradas da sopa servida, caso contrário os vómitos acompanhados de um ou dois estalos não se faziam esperar.

…AO ENCANTO PELOS JOGOS DO FUTEBOL

Marcante também foi a “festa da rija” por derrotados em duas frentes!
Como já acima se disse, o nosso “campo de futebol”, estava situado em paralelo com a Rua das Furnas, logo abaixo da colina onde a escola se situava, por detrás do Salão de Festas.
A nossa equipa era constituída por alunos da 4ª classe e estava a perder com os eternos rivais alunos do Pedro Santarém.
O empenho era tanto que mal ouvíamos a contínua Palmira
…meninos venham para cima…! …meninos venham para cima…!
Pois há muito que o horário, marcado para as aulas no período da tarde, tinha sido ultrapassado.

Ao lado da contínua Palmira a mestra já com as faces ruborizadas, com o cabelo enrolado em jeito de carrapito, de bata branca com mãos atrás das costas, assistia incrédula à indisciplina dos seus alunos da 4ª classe que, muito tristes, a pouco e pouco, desistiam de jogar desmotivados, por um lado, pela impossibilidade de recuperar os golos sofridos e, por um outro lado, pelas consequências disciplinares que se adivinhavam, às quais já não podiam fugir.
Nesse dia, a maior parte de nós sujos e suados, nem sequer tivemos a oportunidade de nos sentarmos nas carteiras. E para exemplo dos prevaricadores e sob o olhar atento dos alunos das restantes turmas as reguadas mais uma vez foram postas em prática.

RETRATOS DA VIDA DE UMA PROFESSORA QUE ADORO E QUE JAMAIS A ESQUEÇO

Mas quem era, quem é esta professora que eu adoro e que já mais esqueço?
A professora Maria Helena, em recentemente encontro no Centro Comercial das Amoreiras, em Lisboa, onde esteve presente um outro seu antigo aluno – o José Fernando - também ele professor jubilado e licenciado em Pintura, deu para saber que esta amorosa personagem, já considerada por mim morta, é natural de Lisboa da Freguesia de S. Cristóvão. Se bem que tenha crescido e vivido, durante praticamente toda a sua vida, na freguesia de Santa Isabel, lá para os lados de Campo de Ourique.
Esta Mulher que me ensinou a juntar e a interpretar as letras, que eu adoro, não devo nem a quero esquecer. Por grato e motivado pelas boas recordações da escola do meu Bairro das Furnas.

A professora Maria Helena que já me deu a possibilidade de a recordar em outros escritos, nasceu em Julho no ano de 1927. Seus pais, para que a sua única filha pudesse concluir o magistério primário, tiveram que a emancipar aos 18 anos de idade. Em Outubro do ano de 1946, já professora, com 19 anos de idade, foi colocada por concurso, na escola primária do Bairro das Furnas. Local onde dedicou toda a sua vida a ensinar a ler e a escrever os rapazes deste “seu” bairro.

Hoje, com 84 anos de idade, não perdeu a vivacidade e firmeza que lhe conheci enquanto jovem. Já alguns traços de rugas na face bem vincados são certos, com aquele cabelo branco que outrora não estava ali. Aos meus olhos, vejo-a irradiar saúde e felicidade. A sua memória, ao relembrar os rapazes das suas aulas, fez inveja a este seu antigo aluno e certamente ao companheiro também presente na conversa, o José Fernando.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

ERA DAS MOÇOILAS MAIS BONITAS E OS SEUS OLHOS AZUIS ERAM OS ÚNICOS NA SUA ALDEIA


Nunca precisei da luz do luar para ver a estrela que havia em ti.
Nunca precisei da luz do dia para ver a tua imagem pura da mulher que me gerou. Como me sinto feliz por conservar saudades da minha Mãe.


Era um encanto os olhos da Senhora minha mãe.
Os olhos da vossa avó/bisavó a todos encantavam por onde passava, direi mesmo que eram a sua “marca d’àgua”. A vossa avó/ bisavó era uma mulher de personalidade muito forte, trabalhadora, mas sacrificada na vida. Adorava os filhos, procurando sempre ultrapassar as adversidades da vida que, foram muitas, para que nada lhes faltassem. Para os outros, com quem vivia de perto, havia sempre um dichote brejeiro. Era muito galhofeira, todos a adoravam naquele velho Bairro das Furnas.

Ainda não há muito tempo, quando dirigia palavra a uma sua vizinha no bairro dizia vaidosa a minha irmã vossa tia…Este é o filho da “Tia Georgina” … Ah pois é! Responde a sujeita depois de me reconhecer…Oh Raul que saudades eu tenho da tua mãe, parece que a estou a ver no Carnaval, mascarada e divertida com todos…

A vossa avó/bisavó, era pequenina na estrutura física, mas a sua forma de estar na vida era de desenvoltura e de audácia no enfrentar dos problemas.
Seus olhos eram azuis cor do céu! A sua neta mais velha – Madalena – foi a única que teve a benesse desta herança genética.

Quanto eu mais a olhava, mais encantado ficava com o brilho que aqueles olhos azuis irradiavam. Quando comigo zangada, que muito acontecia, os seus olhos um nada entortavam, mas não perdiam a sua beleza. Esta mulher nascida e criada na chamada zona saloia, em redor de Lisboa, mais propriamente em Montachique. Era a mais nova dos 9 irmãos (4 rapazes e 5 raparigas). Morreu há 24 anos no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, com 82 anos de idade.

I – A VIDA NA ALDEIA DE MONTACHIQUE

Nasceu em 1905. Seus pais, Joaquim Lourenço e Damascena dos Santos, deram-lhe o nome de Georgina dos Santos. Baptizaram-na na Igreja Matriz de Fanhões, no Concelho de Loures. Não foi à escola. A família vivia muito pobre. Comiam
do que o terreno baldio lhes dava.
As moçoilas, suas irmãs, lavavam e “coravam ao sol” as roupas dos senhores da grande cidade.

A vida da vossa avó/bisavó é-lhe madrasta desde muito nova. Com 9 anos de idade, em 1914, estoira a 1ª Grande Guerra Mundial, a falta e o racionamento dos bens de primeira necessidade começa a ser uma evidência muito forte. Três anos mais tarde, incorporado no primeiro contingente de soldados portugueses, vê partir da sua terra natal, para a guerra na região da Flandres francesa, um dos seus irmãos. Os outros três são sucessivamente chamados para servir o regime militar obrigatório mas já não foram à guerra. Dois outros irmãos (um rapaz e uma rapariga) de forma dramática desistem de viver ainda muito jovens.

Ainda criança, já lavadeira como as demais raparigas na terra, lavava a roupa numa ribeira por perto. Ficava encantada quando chegava o dia de auxiliar o carrego das trouxas, com as suas irmãs, para as galeras que as levavam a um dos paradeiros da cidade, mais propriamente ao Poço do Borratem, junto à Praça da Figueira, onde pernoitavam, tendo por companhia, por perto, os animais que as transportavam.

II – O ABANDONO DA SUA TERRA NATAL E O ENCONTRO COM A CIDADE

A vossa avó/bisavó era das raparigas mais bonitas de Montachique. Era a única, com os olhos da cor do céu. Aos 22 anos apaixona-se. Dessa paixão, aos 23 anos, nasce o primeiro filho, o Fernando, hoje já falecido. Ao confrontar-se a ficar mãe solteira, dado que o seu enamorado negou perfilhar o rapaz e assumir as responsabilidades do matrimónio, desgostosa, resolve abandonar a sua aldeia com o intuito de conseguir, na cidade, melhores oportunidades de trabalho com vistas ao sustento do seu filho, entregando-o temporariamente aos cuidados e à responsabilidade dos seus pais. E com a bênção destes, parte para Lisboa nas galeras que transportavam as trouxas. Já na cidade, valeu-lhe uma outra moçoila de cor preta, serviçal de um capitão, a quem há muito recebia e entregava, no paradeiro, a roupa da casa deste oficial.

A Antónia, assim se chamava a sua amiga, ao ver a vossa avó/bisavó sofredora
e chorosa, logo se prontificou a ajudá-la e a interceder junto do militar superior. Sendo que, nesse mesmo dia, a Dª. Georgina, ficou a ser colega desta sua grande amiga, na casa deste capitão, lá para os lados das Amoreiras.

Esta linda “criada de servir” de olhos azuis cor do céu, não passou despercebida a um rapaz moreno e bem pa-
recido que, dava pelo nome de Adriano Pica Sinos, vosso avó/bisavô, também morador na mesma freguesia de Stª Isabel. Daqui a levá-la para a barraca que construiu ou alugou no Casal do Louro nº 30, na Estrangeira de Cima, em Alcântara, foi um ápice. E, No ano de 1933, já com 28 anos de idade, para agregar ao seu companheiro e ao regressado, há muito, seu filho Fernando, já com 5 anos de idade, presenteia-os com o nascimento de uma outra criança, a minha irmã/vossa tia Helena.

III – OPERÁRIA, A VIDA SOCIAL E FAMILIAR

Mais tarde faz-se operária na “Fábrica das Colheres”, no 200 da Rua da Junqueira, às Janelas Verdes. Um acidente, com a máquina de moldar o estanho, marca-a para toda a vida. “Esqueceu-se” de retirar da guilhotina o dedo indicador da mão direita. Sendo certo que esta deficiência não a coibiu, após sair da fábrica, ser servente, com a função de partir pedra para as calçadas e passeios de Lisboa, numa das pedreiras em Alcântara.

No ano de 1935, estoira a guerra civil de Espanha. Em consequência dificilmente os parcos escudos que os vossos avós/bisavós recebiam, mal chegavam para adquirir os alimentos necessários para o sustento da família. Com a manutenção do racionamento dos alimentos imposta pelo governo, a vida complica-se ainda mais. O seu filho – Fernando – contrai a doença do peito (tuberculose) e, é novamente entregue aos cuidados da avó materna, a Dª. Damascena dos Santos, em Montachique.

Em 1939, o desgosto mais uma vez se instala na família. O Manuel Custódio, um outro filho da avó e do avô Adriano, morre de uma pneumonia aos 5 meses de idade. A mágoa é enorme e, como as desgraças não fossem suficientes, ao vosso avô/bisavô, é-lhe diagnosticada a doença de esclerose múltipla.

I
V - MUDAM-SE OS RUMOS, MUDAM-SE AS VONTADES

Dois anos mais tarde, por via da atribuição de uma casa de renda social ao vosso avô/bisavó, que era cabouqueiro e funcionário público da C.M.L., a D
. Georgina, com o seu companheiro e com a menina filha do casal, deixa a barraca, em Alcântara, para passar a viver no Bairro da Quinta da Boa Vista, em Benfica.
Aos 36 anos de idade, em 1 de Junho de 1941, contrai o matrimónio na igreja de Benfica. E, quando em 1942, consegue emprego na Comissão Reguladora do Laboratório dos Produtos Químicos e Farmacêuticos, ao Calhariz de Benfica, como servente e lavadeira, obviamente deixa a fábrica e o partir da pedra para outros.

Porém nem tudo é melhoria. A doença do seu companheiro, aliada à pobreza que afecta a todos os trabalhadores, sobretudo em Lisboa, constata, verifica, que o seu marido, vosso avô/bisavô, elege o vinho como “bom analgésico” para as dores que trás no corpo e, quiçá ”permitir-lhe o esquecimento” das amarguras do dia-a-dia. O constante “bambolear no andar” começa a ser preocupante. A D. Georgina sofre e muito.

De todo o modo a vida continua. Em 1945, a 13 de Dezembro de 1945, contrariamente ao que a vossa avó/bisavó pensara ser um mioma (tumor benigno no útero), por inchasso crescente na barriga, era uma nova gravidez, neste caso o vosso pai/avô, Raul Pica Sinos.

A família aumentava e as condições de habitabilidade dão-se por insuficientes. Então foram criadas as condições para junto da C.M.L. concorrer a uma nova casa social, com mais uma divisão (T3), num bairro de casas desmontáveis, recentemente construído, na Quinta das Furnas, bairro esse que ficava junto ao Jardim Zoológico – o que veio a acontecer em Outubro de 1948 –.



V - MELHORAM AS CONDIÇÕES DE HABITABILIDADE, MAS AS DA VIDA TARDAM



É muita a dureza do trabalho. Pela madrugada, às 05.30 horas, começava os seus afazeres com a limpeza no Laboratório ao Calhariz de Benfica. Acabadas as tarefas, quando chegava a casa, por volta do meio-dia, fazia o almoço para a família. Às 15.00 horas, no lavadouro social do bairro, começava a faina das
lavagens, do estender e do apanhar, depois de seca, a roupa e os atoalhados que trazia do laboratório. Já noite tinha lugar o cozinhar. Depois do jantar, não raras as vezes, ficava silenciosa, sentada/debruçada na mesa pela noite dentro. Era visível o seu sofrimento pela má sorte na vida, quer por via da dureza profissional, quer por via dos afazeres domésticos.

Não obstante os dias passam! O vosso avô/bisavô começava, com o agravar da doença (esclerose multiplica), cada vez mais a encontrar na bebida “agasalho” para as tristezas do seu dia-a-dia. Situação que motivava grande desgosto à D. Georgina. Originando, com muita frequência, discussões e desavenças deveras complicadas.

Os pobres não tinham alternativas, procuravam esquecer os “amargos na boca” e as mágoas, conforme a vida lhes permitia. Contudo e com o crescimento da família, a pouco-e-pouco, a vossa avó/bisavó, procurando fugir ao entristecimento, organizava, a custo, a lida da casa com vistas a viverem o melhor que podiam.

Em 1949, casa com 16 anos de idade, a sua filha Helena. Em 1951, nasce a sua 1ª neta – Madalena. Quatro anos mais tarde, nasce uma 2ª neta – Gina. Ainda em 1955, por razões de melhores condições de habitabilidade, a sua filha Helena, deixa o bairro das Furnas. Em 1958, com 13 anos idade, o seu filho Raul passa a trabalhar na Robbialac Portuguesa. A casa da vossa avó/bisavó fica mais vazia e, desta oportunidade, reivindica e consegue um quarto só para si. Passa a dormir sozinha.



VI – COMO NAS MOEDAS, TAMBÉM A VIDA TEM DUAS FACES



A vossa avó/bisavô, para desanuviar as tristezas que a assolam, desafiada pelas suas grandes amigas e vizinhas da mesma rua do Bairro – a Ilda dos “Óculos”, a “tia” Carolina, a Rosa, a Esperança, a Mª do Carmo, entre outras, inscrevia-se, com o marido e o filho Raul, em passeios que, eram pagos em prestações pecuniárias ao longo do ano. Estas excursões eram sobretudo ao norte do país e tinham como duração de 5/8 dias de viagem. Eram no verão, nos poucos dias de férias que se conseguia. A maior parte das refeições eram confeccionadas junto das camionetas que as transportavam que eram da pertença da Cooperativa

Lisbonense de Chauffeurs – “Palhinhas”. As dormidas do pessoal, eram dentro ou fora das mesmas, enrolados em mantas.

Outros motivos de regular distracção da D. Georgina e amigas, sobretudo da Ilda dos “Óculos e da Esperança, também eram, nas noites de verão, algumas “saltadas” à Feira Popular, localizada à época, no Parque José Maria Eugénio, na Praça de Espanha. A barraca dos “espelhos” era visita obrigatória. Esta barraca provida de espelhos que deformavam o corpo, também estava equipada com altifalantes para o exterior, permitindo ouvir, a quem passava, o gargalhar no interior. As risadas destas “folionas” eram tantas que não raras as vezes, outras entravam para se juntarem à “festa”.

Também pelo Carnaval a vossa avó/bisavó não perdia um dia da folia. Sempre mascarada, por vezes com a farda do trabalho do marido, com a vassoura pelas costas. Enfiava na braguilha uma cenoura, fazendo rir a bom rir quem por ela passava. Como aquela gente a adorava. Sobretudo a juventude que a cumprimentava sempre com um beijo.

Mas nem tudo eram sorrisos. A doença do vosso avô/bisavô agrava o seu estado de saúde físico e mental. É dado como incapaz para o trabalho. No ano 1962, pela força, é internado no hospício do Telhal

VII – CHORAM-LHE OS OLHOS AO VER PARTIR O SEU “MENINO” PARA A GUERRA



Em Março do ano de 1966, já com 61 anos de idade, a sua coragem enfraquece quando vê o filho Raul ingressar nas fileiras do exército. Um ano mais tarde, mais propriamente em Abril de 1967, ao saber que o seu “menino” está mobilizado para a Guiné, corre ao encontro do Mário para que este interceda junto de alguém (?) com vistas a anular a guia de marcha para a guerra. Sem êxito.

O Mário era preto e bem constituído! Era funcionário público, desconhecendo o autor em que serviço estava colocado e o que fazia. Era filho da Dª Antónia, sua grande amiga e colega enquanto criada de servir. Foi esta sua amiga que valeu à Dª. Georgina por ocasião do abandono da sua terra natal quando moçoila. A Dª. Antónia, também já vivia no Bairro das Furnas, na Rua dos irmãos Nina e Lélé, mesmo ao lado do revisor da CP, o Sr. Caixinha.

O Mário, filho mais velho da Dª. Antónia, também chamava de “mãe” à vossa avó/bisavó. Ao que se julga saber, tal carinho advinha de acontecimentos em períodos passados quando ele, miúdo, a visitava na barraca em Alcântara. A vossa avó/bisavó possuía um “par” de galinhas e uma cabra da qual extraía o leite para a família. Quando o Mário dizia que tinha fome, deixava-o mamar nas tetas da cabra até se saciar. Gesto que nunca esqueceu por agradecido.

É no cais de Alcântara, que mais uma vez os seus lindos olhos azuis choram de tristeza. Este cais, outrora local de giro, em algumas tardes de domingo, com a sua filha Helena, é agora palco para ver muitos meninos partirem para a guerra. E o seu vai também. A dor mais uma vez se instala naquele corpo pequenino e já ligeiramente curvado da idade.

VIII – RUA DOS PLÁTANOS Nº 14, UMA CASA CHEIA DE SAUDADES



À D. Georgina, já há muito é uma mulher reformada. O seu marido está internado na Casa de Saúde do Telhal sem recuperação possível. O seu “menino” está lá muito longe na guerra colonial. Vale-lhe como companhia a sua amiga Dª. Esperança, as vizinhas da sua rua dos Plátanos e a gata – a Zaruca –.

Visita assídua da casa passa também a ser também uma jovem de 20 anos, a Mª Emília, hoje vossa avó, e à época namorada do seu filho Raul e sua futura nora, trazendo-lhe, de quando em quando, as notícias em cartas que chegam da Guiné.
Em 1968, mais propriamente no mês de Dezembro, o corpo do marido passa a descansar em paz no cemitério de Benfica. E como de desgraças já bastassem, para sua distracção, começa a ser visita assídua do Jardim Zoológico. Distribuindo, aqui-e-ali, pedaços de pão, já duro, pelos animais, sendo-lhe atribuído pela Direcção do Zoo um cartão de benemérita, o que lhe permitia entrar no recinto, no horário das visitas, sem nada pagar.

Mas embora mais velha, a vida vai mudando felizmente para melhor. Em Março de 1969, o seu menino Raul regressa, são e salvo da Guiné. E os preparativos para o casamento do seu filho agora regressado, não se fizeram esperar. No dia 5 do mês de Maio desse mesmo ano acontece festa rija na aldeia do Pombalinho, lá para os lados da Golegã. A sua nora, a Mª Emilia, Uma das suas “filhas da terra” opta por casar na sua pequena capelinha. Ao contrário do que aconteceu no casamento da sua filha Helena, a presença da D. Georgina, foi bem notada em toda a cerimónia. Desta vez a confecção da boda e do abrilhantar das mesas coube a outros.



IX – NETAS, BISNETOS E UMA NOVA CASA



A sua filha Helena já lhe tinha dado 2 netas, a Madalena e a Gina, que a amiúde a visitavam no seu velho Bairro das Furnas. O seu filho Fernando, a viver no Bairro de Stª Cruz em Benfica, também já tinha contribuído para o aumento da família ao dar-lhe 2 netos e 2 netas – o Amadeu, a Fernanda, o Fernando e a Cristina. Faltava agora o seu rapaz que, casado, saiu de sua casa para ir viver um pouco mais acima, no Calhariz de Benfica, na antiga casa dos seus compadres, dizendo a D. Georgina, não poucas as vezes…não quero morrer sem ver os filhos do meu Raul... Prece que foi atendida por muitos bons anos.

3 Anos mais tarde, no ano de 1972, nasce a primeira neta filha do seu Raul,

a Ana Sofia, vossa mãe (do Luís e da Inês) e tia (da Lara). Neta que não a viu só nascer como a ajudou a criar, ficando inclusive à sua guarda durante e no horário em que os pais trabalhavam. Também a acompanhou durante 2 anos no trajecto da ida e no regresso à escola primária do velho Bairro das Furnas.



Há muito que se falava da construção de um novo Bairro das Furnas. O velho bairro, construído com paredes de lusalite cinzentas, foi inaugurado em 1946. Era tido como um “bairro provisório de casas desmontáveis”. Provisoriedade que só cerca de 30 anos mais tarde acabou, realojando-se por fases os moradores. Agora, no ano de 1976, os/as prédios/casas de construção em cimento e de tijolo, no primeiro grupo de moradores a ser realojado a sul do bairro, a D. Georgina estava incluída, ficando doravante aos cuidados da sua filha Helena, agora com ela novamente morar.



Corria o ano de 1978, quando a sua neta Madalena lhe dá a primeira bisneta, a Susana. Em 1979, cabe a vez da sua neta Gina de lhe dar mais um bisneto, o José Pedro, não parando, como natural, a família deixar de aumentar. Em 1980, do seu filho Raul, nasce mais uma menina, a Catarina.

Quando alguém perguntar quem foi a vossa avó/ bisavó, digam que foi uma das raparigas mais bonitas da sua aldeia natal e a única com os olhos azuis cor do céu. Digam que foi uma mulher pobre, sacrificada mas honrada na vida. Foi uma mulher de personalidade muito forte e trabalhadora. Adorava os filhos, netos e bisnetos. Morreu a 19 de Março do ano de 1987, no “Dia do Pai”, que descanse em paz.

As fotos:

A D. Georgina com 36 anos. Um grupo de lavadeiras (Google). A galera do filme Aldeia de Roupa branca transporte da roupa. Uma panorâmica do velho Bairro das Furnas. O Lavadouro do velho Bairro das Furnas do Livro “O Meu Bairro das Furnas”. A D. Georgina com a Ilda dos óculos. A D. Georgina no Jardim Zoológico. A D. Georgina com a neta Sofia

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