…Apraz-me sentir, pelas manhãs, o vento fresco na cara. Ver o “dançar” das árvores e o entrelaçado da hera que, sempre arranco uma folha... …Como as árvores que dão como frutos a amizade. Espero pacientemente, que o “tempo e o vento” as façam cair quando essas já estão podres.
O levantar cedo nunca foi para mim grande preocupação. Mesmo em pequeno, quando ao acordar, era lesto no arrebitar. Talvez pelo costume de minha mãe que, antes de sair para o trabalho, ficava com a certeza que o seu filho tomava o pequeno-almoço que preparara.
Era certo que as horas das aulas ainda não estavam por perto. O compasso da espera permitia fazer uma, ou outra, redacção a que estava obrigado. Caso contrário, fizesse chuva ou sol, fazia-me ao caminho.
As escolas (dos rapazes e das raparigas) ficavam por detrás da igreja, situadas na colina, lá bem no alto, do velho bairro. No seu caminho, tinha todo o tempo, para chutar as pedras soltas, da bonita escadaria, ladeada por ciprestes, que lhes dava o acesso. Olhar o “bailado” e o “sentir” da cumplicidade das árvores em que os seus frutos são os pássaros. Espreitar, os ninhos previamente, ou não, identificados. Responder aos seus cantares com o assobiar. Eram, no dia-a-dia, as rotinas dos meus trajectos.
Já na tropa, sobretudo em África, no país em que estive dois anos mobilizado, estes hábitos não se perderam. Acresciam a toda esta vivência de miúdo, outras realidades: O sumido canto dos galináceos existentes na tabanca, do piar das aves rapinas, o coaxar das rãs e, sobretudo, do cheiro da terra que pairava no ar. De manhã, bem cedo, tudo isto, como no passado, me encantava.
Agora, já a curvar as costas, proveniente da idade, ainda me levanto cedo. Mesmo quando aos fim-de-semana, o mais comum dos mortais gosta de estar enrolado, mais umas horas, nos cobertores.
É certo que, já não me faço ao caminho desabrigado da chuva, como fazia em pequenote. Quando o tempo permite, apraz-me sentir, pelas manhãs, o vento fresco na cara. Ver o “dançar” das árvores e o entrelaçado da hera que sempre arranco uma folha. Ouvir, como outrora, o “acordar” da passarada. Ver do seu jeito o banho, que sempre fazem nas poças existentes, repelindo repetidamente a água das pequenas asas. Gosto ainda de responder, como ontem, ao canto das rolas e ao assobio dos melros.
Nas presentes manhãs, é neste quadro que balançam os mais variados pensamentos. É neste quadro que arrumo as ideias do projecto da vida e, me penitencio dos erros cometidos. Procuro ser como as árvores em que os seus frutos são amizades. Ter uma relação de vida pacífica. Nunca fui apressado em sacudir as dúvidas do acaso quiçá destroçado. Espero pacientemente, que o “tempo e o vento”, as façam cair quando já estão podres.
…Meu Capitão, eu tenho muito medo, não me deixe ir para Nova Sintra, tenho um mau pressentimento… - …Vou falar com o Comandante, logo te digo…respondeu-lhe o Capitão. …Então meu Capitão já tem resposta para mim? – …Tenho! O Comandante não abre excepções. Vão todos. …Ninguém fica para trás, olha que insisti bastante! O Ramiro Neto morreu em Nova Sintra, a 13 de Maio de 1968.
Com “aviso prévio”. 7 Dias depois, aquando da primeira flagelação do inimigo (IN), às posições das nossas tropas (NT), estacionadas em Nova Sintra - Guiné, o nosso bravo camarada morreu. A morte foi originada pelo estilhaço de um rebentamento de uma granada de morteiro. Pensava ele estar protegido, na vala-abrigo que construíra, pela tampa de chapa de bidão.
O fragmento entrou pelo único buraco que deixou aberto. Foi a 13 de Maio de 1968.
Na zona operacional do comando do Batalhão de Artilharia (Bart1914), a tabanca de Tite, que ladeava a sul e a norte o aquartelamento das nossas tropas (NT), era o maior agregado populacional do perímetro operacional, seguindo-se as tabancas de Bissassema, Jabadá e Fulacunda, de entre as demais.
Esta dispersão populacional, contornada por rios, bolanhas e matas, rica no cultivo orizícola, em pecuária (bovino) e, na suinicultura (suínos), possibilitava, ao inimigo (IN), grande mobilidade no desencadear das acções de guerrilha, na flagelação aos nossos aquartelamentos, e, no controlo demográfico e político-administrativo das populações.
Consequentemente, ainda permitia sacar, dos habitantes, farto abastecimento em géneros, roupas (panos), e elevado recrutamento de carregadores para o transporte do material bélico.
Toda esta magnificência operacional do IN, obrigava a implementar, da nossa parte, um vasto e variado conjunto de operações de combate, e, simultaneamente desobstruir estradas e caminhos, há muito emaranhados por denso matagal, criar novos aquartelamentos na área, com foi o caso em Nova Sintra. Anulada a guerrilha nos trilhos. Desobstruídas as estradas e os caminhos, reparados, reconstruídos ou mesmo construídos os pontões, veio permitir utilizar meios, até aí impossibilitados, nomeadamente os carros de combate – Daimlers – (jeeps blindados) e, viaturas ligeiras e pesadas para transportes das tropas.
100 METROS QUADRADOS DE HORROR
Dos nossos opositores, todas estas acções não podiam ficar sem resposta. Detentores do território, organizados, bem armados e municiados, procuravam, energicamente, impedir a construção do aquartelamento, montando, para o efeito, novas emboscadas e, a colocação de dezenas de minas no terreno e granadas accionadas por fio de tropeçar. Destruíram, por várias vezes, os pontões já implantados, colocaram abatizes armadilhados e, organizaram obstáculos por grossos ramos de árvores, fortemente ligados ao solo com as extremidades aguçadas.
No entanto nada destas acções, viriam a impedir as NT de consolidar a presença no terreno. Chegados ao local, despejadas as viaturas, os trabalhos iniciaram-se a ritmo acelerado. Isolou-se o perímetro com o arame farpado, construíram-se valas-abrigos, a norte e a nascente, talvez com 2 metros de largo e 5 metros de comprimento e, as latrinas. Deu-se começo às fundações para os futuros pavilhões e, postos de guarnição para a defesa das posições. Começou-se também a limpar terreno com vistas a abertura da pista de aterragem.
Conta o Ex-Furriel Domingos Monteiro:
…As moscas e os mosquitos eram “personagens” deveras e muito incomodativas de dia. Á noite faziam desesperar com as sucessivas picadas, nem mesmo a roupa que trazíamos vestida as conseguia travar!
Acrescentando:
…As horas que passavam na escuridão daquela selva, mais pareciam dias. As chuvas também estiveram presentes. Quando, passados 7 dias de medos e incertezas, a 13 de Maio de 1968, pela calada da noite, o perímetro de terra e lama onde as NT se aquartelavam, com cerca de 100 m2, rodeado de arame farpado, é atacado, em força, por cerca de 100 homens. Causando às NT, 1 morto e 19 feridos graves que, muitos foram evacuados, nessas mesma noite, por helicópteros directamente para Bissau. Do lado contrário, as mortes confirmadas foram em número de 26 e feridos 31…
…Na manhã seguinte e durante o dia os trabalhos continuavam. No perímetro patrulharam-se as estradas e os caminhos, aqui ali rastos de sangue e material bélico ligeiro que, foi deixado para trás. Os nossos alimentos durante dias, foram as rações de combate. Na água que bebíamos colocávamos comprimidos para evitar as diarreias e febres…
Por sua vez o Carlos Leite (Reguila) refere: …Na sucessão dos dias tudo era igual, o trabalho com as pás e com as picaretas calejava-me as mãos, o medo era constante, mas a disposição para a luta sobreponha-o… …O cantarolar da passarada não me parecia ter o mesmo encanto… …No terreno lamacento, alguns sapos, eram “sticados” pela pá ou com a picareta… Refere ainda: …Pelas noites dentro o sofrimento era maior… …Aqui ali ouvia o ladrar dos cães… …O vento ora forte ora brando, fazia-me confundir o “som” da selva... …Ouvia as flagelações do IN a outros aquartelamentos e questionava-me; quando será, novamente, a nossa vez...que foram muitas… …Eram nestes momentos que a falta da família e dos meus amigos mais se sentia…
Com “aviso prévio”, foi no breu da calada noite de vento brando que, o nosso amigo e querido camarada Neto morreu.
A morte foi originada pelo estilhaço de um rebentamento de uma granada de morteiro. Pensava ele, na vala-abrigo que construíra, estar protegido pela tampa de chapa de bidão. O fragmento entrou pelo único buraco que deixou aberto. Foi a 13 de Maio de 1968.
Dá cada dia ao homem novo alento De conquistar o bem que lhe é negado Dá a conquista um puro sentimento As balas dão o sangue derramado