domingo, 18 de dezembro de 2011

E HOJE VOLTAMOS A BRINCAR NO JARDIM ZOOLÓGICO



As “meninas”, tal como miúdas, não se fizeram rogadas. Saltaram a cancela do acesso do carrossel que, mesmo parado, “cavalgaram” nos cavalos, agarradas aos ferros, a imaginar como que o tempo não tivesse passado.

…Há muitos, muitos anos, na parte interior do Jardim Zoológico, no perímetro reservado à pequenada, anexo à vedação, provido altos ferros verticais de cor verde, que terminavam pontiagudos em corte de lança de cor dourada, junto a uma carreira de canas de bambu, de várias dimensões, existia uma “aldeia” de pequenas casinhas multicoloridas, onde a pequenada costumava brincar.
O sino do pequeno campanário da igrejinha não parava de tocar. Pelas portas das entradas dos minúsculos edifícios, não raras vezes eram palco de constantes atropelos, tal a azafama das brincadeiras. A situação era idêntica quando, a pequenada, saltava alegre e satisfeita pelas janelas de dimensões idênticas.
Brincar às escondidas era também “momento alto”, originando que fugissem assustados os pequenos galináceos (cocós) que nesta área habitavam…

Hoje, deu para verificar que tudo se mantém fiel ao passado. Aqui ali com algumas modificações, com conservação algo pouco cuidada. O sino que outrora existia no campanário da igrejinha sumiu-se, as cores de algumas casinhas estão debotadas, descoradas. Os cocós que por lá tinham o seu habitat, não foram avistados. Mas, no fundamental, o “nosso” jardim lá está, para que a pequenada de hoje se possa divertir, como alguns nós, agora avós, há muitos anos o fizemos.

Mas o que motivou este encontro de amigos/as no nosso Jardim Zoológico? E o que os/as fez correr para o Jardim dos Pequeninos?
Há já algum tempo, também em idêntico encontro, foi acertado que, os sagitários deste grupo de amigos se encontrariam para festejar o aniversário e que, os não sagitarianos do grupo seriam convidados de honra. Também ficavam, os convidados de honra, encarregados não só de pagar o seu respectivo almoço, assim com das oferendas aos aniversariantes. Que tal?

Tal festividade decorreu no passado dia 17 de Dezembro no Papa-formigas. Dos 9 mastigantes do bacalhau no forno, que estava uma delícia, só 4 eram (são) sagitários/as. Cantou-se os parabéns a você, fizeram-se ondas de alegria, festejou-se à saúde dos presentes e, naturalmente a todos aqueles que se ama. Foi um almoço revestido de camaradagem, amizade e alegria que não tarda a repetir-se.

Satisfeitos/as, já de saída, os olhares prenderam-se no carrossel da entrada do jardim. Como miúdas, as “meninas”, não se fizeram rogadas e, saltaram de imediato a cancela do acesso. Mesmo parado “cavalgavam”, nos cavalos, agarradas aos ferros imaginando o carrossel. Até ao momento que as corridas foram outras. Foram corridas…pois foram, mas… “corridas” pelo empregado e, obrigadas a descer do abusivo montar. De seguida resolvem comprar os bilhetes de ingresso. Desta vez devidamente montadas, viam-se constantes rasgos de alegria. Fazendo inveja à mais famosa das amazonas.
Depois foi vê-las naquele espaço dedicado à pequenada a “repetir” as brincadeiras de outrora, não sendo difícil imaginar, estes amigos/as do peito, quando meninas e meninos, nas muitas décadas já passadas neste jardim infantil: ….

…A Tê, a Lena e a Teresa apanharam todas as bolachas em altura, não admira são mais altas…
…A corrida dos sacos de batatas foi ganha pela Mónica e pela Clarisse…
…A corrida dos 50 metros pelo Luís e pelo Raul…
…A Nelinha e a Olívia, desistindo de tudo quanto eram corridas, por derrotadas, foram ver se apanhavam ovos das cocós….

Fui um dia que há muito não passávamos
Tenham também um dia feliz
Clarisse, Helena, Luís, Manuela, Mónica, Olívia, Raul, Teresa Carvalho e Teresa Silva

terça-feira, 25 de outubro de 2011

AS "VELHAS" DO MEU BAIRRO DAS FURNAS XII

Oh Ti Georgina! Chama alguém junto da cancela do quintal.
Quem é? Retorquiu.
Sou a Adélia.
Diz filha…, o que queres?
Olhe: A sua roupa que está estendida no estendal, já está toda enxuta. Eu preciso dos arames!
Ah é? Então vou já querida, vou já.

Por causa da ocupação, por uma só pessoa, de muitos dos arames por via da roupa estendida, havia por vezes discussão.
A Ti Georgina, bem cedo, ocupava quase todos os arames do lado direito do estendal do lavadouro existente ao fundo das ruas do Bairro.
A roupa que lavava, proveniente do Laboratório onde trabalhava, era imensa. Sobretudo toalhas, batas e alguns lençóis da casa das doutoras, que quando penduradas nos arames e estendidas no chão ao sol, pouco espaço deixava. Principalmente para quem também tinha muita roupa para estender.

As “velhas” do meu Bairro, em especial as da minha Rua, porque melhor as conheci, eram, (algumas felizmente ainda vivas), gente muito humilde, simpáticas e de bom trato para com todos. Sobretudo com as crianças.
Respeitavam o próximo e faziam-se respeitar.
Quase todas analfabetas, mas conhecedoras da vida como ninguém.
Eram “mestras” em ultrapassar as dificuldades com que se deparavam e, não eram embaraços tão pequenos como isso.
Eram tempos muito difíceis.
Quantas vezes comiam mal, para que o pouco que tinha não faltasse aos seus filhos e quiçá maridos.
Contudo, diga-se, que nem todas as “velhas” do meu velho Bairro das Furnas, pautavam pelo mesmo grau de dificuldades. Umas tinham menos dificuldades que outras. Mas todas tinham vidas sofridas. Contudo, também sabiam rir e brincar, sabe Deus, muitas vezes, a que custo.

Onde vais Georgina? Diz-lhe uma vizinha ao vê-la subir a rua dos Plátanos. Vou à praça. À Cármen. Vou fazer contas com ela, e comprar uma cenourita. Talvez também um nabo para pôr na sopa.
Olha…Não vou demorar. Tenho o feijão ao lume, há duas horas, e o “cabrão” ainda não cozeu. O Adriano vem comer ao meio-dia, não me posso atrasar.

A Cármen, vendia, frutas e as hortaliças na praça. Cujo edifício detinha diversas bancas de produtos hortícolas e de frutas. Também era provido de talho, padaria e mercearia. Ficava situado na entrada do Bairro.
A Cármen era uma mulher alta e bonita. A sua voz era forte. Amiga do seu amigo. Sabia das dificuldades de todos os seus clientes, e sempre que saldavam as contas ao “rol”, ajudava, na nova encomenda, com a oferta de uma ou outra peça da sua bancada.

Como eu recordo: Da mãe da Beatriz. Da mulher do Ti Cardoso, mãe do Meca. Da Ilda (dos óculos), da Ti Carolina. Da Ti Engrácia, da Ti Teresa, que vendia azeitonas e morava em frente à casa da Olga. Da Ti Rosa, da Ti Irene.
Como eu recordo: A mãe (e da irmã) do Zé Koi, que mais tarde foram para a rua das Oliveiras.

Como eu recordo: Da Maria do Carmo, Da mulher do alfaiate, que morava em frente à minha casa. Da Ti Matilde infelizmente pouco me lembro. A Ti Josefa, alentejana e mulher do sapateiro, que o seu ritual diário era estender, em panos colocados no chão, as ervas e pétalas das flores, que colhia, secando-as ao sol, destinadas à venda para chá.
Como eu me lembro da Adélia, felizmente ainda viva. A Ti Herondina a mãe da Maria Damião, filha do Ti Geraldino. Um dia escreverei sobre este extraordinário homem. Quem não se lembra da Paulina que vendia lexívia e que morava na primeira casa na parte de baixo da rua dos Plátanos.

A minha casa, a pretexto do romance do “Tide”, que passava todos os dias na rádio, pela tarde, depois do almoço, era palco de encontro de diversas vizinhas.
Quer o romance, quer o que se passava depois dele, o que conversavam/contavam umas às outras, não me preocupava saber.
Confesso que não gostava de romances e muito menos de “encontros de cusquice”. Se bem que não podia deixar de as ouvir, mesmo fechando a porta do meu quarto.
Num dia… diziam as cenas passadas ou ouvidas de personagens suas vizinhas ou não. Salvaguardando o escárnio e o mal dizer, de alguém que pudesse estar presente.
Num outro dia… o “fado” era o mesmo.
Comentava-se as cenas de quem esteve na reunião anterior, e outras cenas entretanto acontecidas. Faziam uma espécie de “acta falada”.
Sabes o que disse a….daquela que mora…
O marido da fulana… bateu-lhe com a bebedeira.
A sujeita tal… deve-me dinheiro que lhe emprestei e há duas semanas e ainda não me deu. Se o meu marido sabe, tenho “sermão”.
O miúdo da…tem a cabeça cheia de piolhos…
O filho da…está com anginas.

Todos nós, rapazolas, respeitávamos as “velhas” do nosso Bairro. Mas também é certo que gostávamos mais de umas de que outras. Daquelas que nos metiam medos, dizendo que iam fazer queixas às nossas mães, quando encetávamos as barulhentas brincadeiras, gostávamos pouco. Não gostávamos mesmo nada, daquelas porque “dá aquela palha”, faziam queixas ao fiscal Costa. Como era o hábito da personagem chamada Estrela que à beira da sua casa tinha uma palmeira.

Desta senhora, a Estrela, não era só os miúdos que tinham medos. A vizinhança dizia que era irmã da governanta do Salazar. Se era ou não, da fama não se livrara. Como era uma senhora muito altiva, quiçá arrogante, as “conversas” com as suas vizinhas ficavam-se, por uns (entre dentes) bom dia ou boa noite, e mais falas não haviam.

Como eu recordo: A mãe do Luis Filipe, no seu passo pequeno mas ligeiro, a subir a minha rua. A mãe dos irmãos Espinha. Da do Armando Claro, da do José Silva, da Ti Virgínia, entre outras.
Fora da minha rua dos Plátanos, também recordo com saudade: A mãe do “Rabaloto” que era peixeira. Da mulher do Caixinha que era revisor da CP. Da Julieta, mãe do Cataré, Alipio e da Clarisse. Da ti Amélia que vendia fruta numa carroça. Da Pomposa das mamas grandes e de outras tantas.
Que saudades meu Deus.

Dada a proximidade do Bairro ao Jardim Zoológico e quando o vento soprava a norte…
Numa dessas manhãs, oiço perguntar:
Olha lá, não ouvistes toda a noite o uivar dos leões e o cantar dos pavões?
Não dormi toda a noite!
Não filha, não ouvi! Retorquiu a Ti Georgina.
O que ouvi, e que não me deixou dormir toda a noite foi o ressonar do meu marido, com a ressaca da bebedeira de ontem à noite! Raios o partam!

Nota:
A identificação de parte das personagens teve a ajuda de alguns/mas Furnianos

A imagem foi tirada dop Google

sábado, 8 de outubro de 2011

OS RAPAZES DA RUA DOS PLATANOS DO MEU VELHO BAIRRO DAS FURNAS XI

No meu velho Bairro das Furnas, a maioria das crianças eram rapazes. Havia raparigas, mas, o que me dava observar, eram em número inferior. Não me é possível a esta distância, enumerar todos aqueles com quem convivi nas brincadeiras. Tenho relembrado em modestos escritos, alguns com quem partilhei “patifarias” próprias da época. No entanto há lacunas quanto às brincadeiras com as raparigas. Também brincava, mas menos. As mães, os pais e sobretudo as avós, não achavam lá muita “graça” as meninas brincarem com os rapazes. Hoje, o pensamento, felizmente, é diferente para melhor.

Pelas razões atrás aduzidas, torna-se mais fácil “rabiscar” sobre os garotos da minha rua do meu velho Bairro das Furnas. Rua esta que me viu crescer, viver e partir para casar com uma linda rapariga, que dá pelo nome de Maria Emília, mãe das minhas 2 filhas e com quem ainda hoje, felizmente, partilho a vida.

A Rua dos Plátanos, como a maioria das ruas, era dividida por 2 lanços. Moravam no lanço de baixo 4 rapazes. O José Silva, os irmãos Fernando e Carlos Espinha e o Bica que já faleceu. No lanço de cima habitavam mais 12 rapazes. O Luís Filipe, o Luis Damião, o José Fernando, os irmãos Manuel e Valdemar, o Fernando da Carolina, o Raul Pica Sinos, o Julio da Rosa, o Pedro da Engrácia,o Luís Augusto, o Emílio e o Pisco este também já falecido. Havia ainda outros rapazes com idades que já se situavam na esfera da adolescência. Sendo que as suas “brincadeiras” já eram outras. Lembro o Zé Koi, Zé Camacho, Zé António, o Américo, e irmão mais novo da Ilda e da Mariazinha.

Os miúdos do meu Bairro das Furnas, aquando da idade escolar da 1ª à 4ª classe,
tinham brincadeiras, que hoje são raras por diferentes, Se bem que, já naquele tempo, havia miúdos que residiam nos arredores do Bairro, resultante do estrato social dos seus pais tinham algumas diversões que os seus vizinhos miúdos do bairro não podiam achegar.
Essa diferença levava a que alguns moradores nos arredores e “turistas”, tivessem o descaramento de afirmar, que os residentes das Furnas, eram gente problemática no sentido pejorativo.
Problemático da cabeça era quem o afirmava.

Os problemas que existiam eram derivados da pobreza da vida. Sim. Existia muita tristeza na maioria das casas por continuarem a ver os seus filhos mal calçados e mal vestidos. Os seus filhos não tinham acesso aos brinquedos que os outros meninos tinham e, que aqui e ali as montras mostravam. No entanto apesar das dificuldades, os miúdos do meu bairro também brincavam. Faziam os seus próprios brinquedos. Eram felizes com o que tinham. Eram pobres, mas as portas das suas casas no meu velho Bairro das Furnas nunca se fechavam à chave.

Diz o ditado que, com os rapazes nem o diabo se metia. Tínhamos que brincar. A brincadeira mais fácil dos miúdos da minha rua, depois das aulas, era fazer pequenos “desafios”, no cruzamento da rua que dava para o estendal comunitário. Lembro-me uma vez da gritaria da “habitante” da casa de esquina, na frente à casa do Luís Filipe por ter sido “flagelada”, por um chuto na bola menos certeiro.



Suposto era a bola ir na direcção baliza feita de pedras. Não foi. A direcção da bola foi nas chapas de lusalite que cobriam a parede exterior da casa, partindo-se umas quantas. Digo umas quantas porque não deu para ver o efectivo estrago, tendo em conta a fuga então desenfreada.
O fiscal Costa, por queixa da prejudicada, veio de pronto cobrar o prejuízo. Sendo certo que a “brincadeira” não acabou aqui. Depois de feitas as contas, e saldadas com o fiscal Costa, eram “ajustadas” outras contas lá em casa. E durante alguns dias, ficávamos, com as orelhas a arder e não só, e no “banco” sem jogar.

Como eu gostava de abraçar, hoje, os rapazes do meu velho Bairro das Furnas.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O MEU BAIRRO DAS FURNAS E AS BICICLETAS X

OS MENINOS SABIAM ANDAR DE BICICLETA--IÔÔH

Era vermo-nos vaidosos e felizes por termos, mais uma vez, a oportunidade de andar de bicicleta. A alegria foi de tal forma que não deu para verificar que as horas passaram mais depressa.

Não sei se ainda existe, no Campo Grande (Lisboa), o espaço que era dedicado à rapaziada da minha geração visando ou proporcionando a aprendizagem e o uso das bicicletas. Assim como, não sei se ainda existe um outro espaço contínuo, reservado a mais velhos com vistas a aprender ou praticar o uso de motociclos.

Lembro que as bicicletas, na maior parte, eram velhas e apenas com um travão na roda traseira. Excepção para as que eram consideradas de corrida.
Os motociclos eram da marca Famel (entre outras marcas), predominando a pintura de cor prateada. Só eram cedidos a quem tivesse mais de 15 anos e deixasse como garantia o bilhete de identidade.

O aluguer das bicicletas, tinham, quando eu menino, valor diverso em função do modelo e do tempo de utilização. Alugar uma pequena bicicleta, no tempo de uma hora, pagava-se então 5 escudos. O aluguer das “aceleras” era bem mais caro. Que inveja e tristeza me faziam os “motoqueiros”, quando da sua passagem bem barulhenta.

O meu salário quando comecei a trabalhar, aos 11 anos, era cerca 2$50 por dia, dinheiro que no final da semana era entregue à minha mãe.
Como podia ter dinheiro para alugar, por uma hora, a bicicleta que tanto cobiçava?
Não era fácil. Só possível se juntado aos tostões das gorjetas, o dia de salário que minha mãe me dava, e ainda um ou outro centavo do troco que rapinava quando ia aos recados.

No meu Bairro das Furnas, a esmagadora maioria dos moradores era de condição pobre. Nós, miúdos, brincávamos com os brinquedos que fabricávamos. Éramos muitos solidários. Facilmente trocávamos os brinquedos, os nossos carros de esferas. A bola de catechu que tinha saído nos “bonecos da bola”, era emprestada a todos quando em desafios. Cedíamos os bilhetes do eléctrico/autocarro repetidos na colecção, por vezes em troca de nada. Quem não tinha bilas, peão ou caricas, não deixava de jogar.

Um dia, um menino com dinheiro suficiente para alugar, durante uma hora, as tão cobiçadas bicicletas do Campo Grande, pela tarde, resolveu por pés a caminho, não só no propósito de alugar uma, mas também decidido a traçar um percurso para longe da pista que lhe estava normalmente reservada.

A chegada do menino ao bairro, foi de festa para todos aqueles que o esperavam. E um a um, deram uma voltinha pelo meu velho bairro.
Era vermo-nos vaidosos e felizes por termos, mais uma vez, a oportunidade de andar de bicicleta. A alegria foi de tal forma que não deu para verificar que as horas passaram mais depressa.
Aflito, o menino, procurou saber por todos os “ciclistas”, se havia dinheiro suficiente para cobrir a despesa, que o tempo extra acumulou. Todos ficaram calados. Não havia!

Então o menino, sem qualquer rebuço, propõe:
Malta, vamos esperar que o dono das bicicletas as recolha e abandone o local.
Depois é só colocar a bicicleta no devido lugar e pirar.
Dito e feito. Já noite, perto da pista vazou-se um pneu da bicicleta e, os 2 ou 3 meninos da aventura, deixaram o velocípede encostado numa qualquer árvore das muitas existentes no Campo Grande. Obviamente, que o tempo extra da posse nunca foi pago, até porque a bicicleta “avariou”.




fotos: Gloog

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

NO QUINTAL DO MEU BAIRRO DAS FURNAS IX

NEM SÓ AS ROSAS METIAM COBIÇA
No meu antigo Bairro das Furnas, a minha morada de casa, na sua frontaria, tinha um pequeno quintal que, para além de muitas flores, detinha duas árvores de fruta, um pessegueiro e uma macieira.
Quem o tratava e se preocupava por estar sempre arranjado e bonito, era a minha querida mãe, a D. Georgina.

Este meu quintal era separado por um corredor de ripado pintado de cor verde. Num dos lados, tinha plantado na sua extensão uma roseira. Brotava as chamadas rosas príncipe preto. As suas pétalas eram de um impressionante vermelho aveludado. Amiúde via a vizinhança a admirar a beleza de tais rosas e, o desejo de as possuir. O roseiral era de tal forma bonito e cobiçado que, foi determinado pela minha mãe, a proibição de arrancar as rosas por quem quer que fosse. Dizia, então…as minhas rosas são para nascer e morrer na roseira.

No outro lado do corredor, a acompanhar também o ripado na sua extensão, estava plantado jarros brancos. Minha mãe chamava-as de “flores de casamento”. Apareciam com a primavera, mas proliferavam sobretudo na estação Outono/inverno.
A D. Georgina costumava decorar a sala da entrada da minha casa com estas flores, e oferecer às vizinhas quando lhe pedissem.

De resto o quintal estava provido de alguns alvéolos/canteiros com amores-perfeitos de cor variada, cravos e crisântemos. E vasos com outros tipos de flores cujo nome desconhecia.
Se bem que gostasse de tudo no meu quintal, eram os jarros que me metiam grande cobiça. Sobretudo a espádice amarela que existia (existe), bem no meio da flor. Travesso, sempre que tinha a oportunidade, enfiava os dedos no fundo do “copo”, lá se ia o “filete”. Ficando eu, com os dedos pintados de amarelo, ocultando tal travessura (até um dia) aos olhares da minha mãe.

Em conclusão: Uma dada vez não me contentei a arrancar o “amarelo” de uma só flor. Apanhado, nem tive tempo sequer de esconder as mãos de algo ”pintadas”. A D. Georgina, do molho de jarros que arrancou, sem o “dito cujo”, não se fez rogada em o espatifar cá no rapaz, enquanto procurava eu, fugir a toda a velocidade do quintal.

sábado, 11 de junho de 2011

A PROPÓSITO DAS FESTIVIDADES DE LISBOA

Como “alfacinha de gema”, nascido em Benfica e, criado nesta grande zona de Lisboa, não posso deixar passar o momento das festividades da cidade, não só para enaltecer este acontecimento festivo, mas também escrever modestas palavras, sobre um outro alfacinha, também de “gema”, originário da freguesia de S. Vicente que é, de certo modo, o “responsável” por toda esta alegria e vivacidade que, me faz recordar, hoje, quanto em miúdo, mesmo sem qualquer trono montado, no meu Bairro das Furnas, a “ajuda” que o seu nome prestou nos meus "ganhos” para as gulosices, na compra dos bilas, das pevides e dos amendoins. E ainda a sua “responsabilidade”, já na minha adolescência, pelos “affaires” com as raparigas, aquando nos bailaricos armados, não só no meu bairro, como nas Águas Boas, por detrás do chafariz em frente à Pedro Santarém, no Calhau, em outros arraiais populares, nos largos, nas vielas, nas ruas de outros bairros e, nas Colectividades desta minha cidade que é Lisboa.


Como eu recordo as fogueiras que se ateavam para assar as sardinhas e, ter a oportunidade de ver as pernas às raparigas quando por elas saltavam, no queimar das alcachofras em flor, para aferir, dias depois, se elas voltavam a florir. Quando assim não fôra, era sinal que o amor por quem se queimou as alcachofras, não tinha reciprocidade.



Ou ela não usa calças
Ou as tem na lavadeira
Dei por isso ontem à noite
Quando saltava à fogueira



Stº António, diz-se, que é conhecido como o protector dos pobres, do auxílio na busca de pessoas ou objectos perdidos e, amigo nas causas do coração, nomeadamente no auxílio às moças solteiras a encontrar noivo. Nasceu, em Lisboa, no dia 15 de Agosto de 1195, e morreu, em Pádua (Itália), aos 36 anos de idade.
Lisboa está cheia de testemunhos do Santo António. Mas o maior, é a igreja, de seu nome, situada na freguesia onde nasceu. Foi destruída pelo terramoto de 1755 e, reconstruída 10 anos mais tarde. Para quem não saiba, a sua construção foi financiada, em parte, pelas doações entregues pelos pobres às crianças de Lisboa que, andavam pelas ruas pedindo um tostãozinho para o Santo António. Razão pela qual, o chão da capela esteja coberto de moedas. Hoje, é muito raro, no bairro mais popular que seja, ver uma criança a pedir umas moedas para as gulosices ou para enfeitar o trono do Santo e, provavelmente as meninas solteiras já não lhe pedem um namorado.


Se eu fosse o cravo vermelho
Que trazes sobre o teu peito
Por muito que fosse velho
Não te guardava respeito


As festividades da cidade desenvolvem-se por vários dias, mas é na noite de 12 para o dia 13 de Junho, o feriado municipal em honra do Santo, que se verifica maior frequência da população nos arraiais montados pelos bairros populares, onde os vasos com os manjericos enfeitados com cravos e pequenas bandeiras de papel, ostentam frases/rimas bem populares, que se esgotam nas mãos das vendedeiras.


E, dançando ao som das músicas dos quintetos, ou ouvindo o fado aqui-e-ali, os populares não perdem a oportunidade nestes dias de comer, servido na malga de barro e, bem quentinho, o caldo verde, as sardinhas assadas em cima do pão e, as fêveras de porco assadas na brasa, tudo regado com vinho a granel, sangria ou cerveja, depois de assistir, ou não, na Av. da Liberdade, ao desfile das marchas populares dos principais bairros de Lisboa e, ao fogo-de-artifício lançado dos barcos estacionados no rio Tejo.


Contam os entendidos que as Marchas Populares no País têm como exemplo, as marchas que o povo francês, no final do sec. XVIII, realizava em Junho. A estas marchas que chamavam “marche aux falambeaux” tinham como objectivo celebrar a tomada da Bastilha. O povo francês, transportando archotes acessos na mão, dançava ao som das fanfarras. Com as invasões napoleónicas – a Marche aux Flambeaux – o povo português assumiu o costume e, passou a chamar-lhe a - Marcha ao Flambó -. Só que em vez de archotes acesos usava balões de papel enfiados num pau. No ano de 1932, em Lisboa, foram incluídas nas festividades em louvor de Stº António.


Cravo, manjerico e vaso/E uma quadrinha singela/Tudo lhe dei, não fez caso/Pronto, não caso com ela.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

HISTÓRIAS DO MEU BAIRRO DAS FURNAS VIII



SACOLA DE PANO Á TIRICOLO PARA APRENDER JUNTAR AS PRIMEIRAS LETRAS

Eu morava na Rua dos Plátanos. Rua situada ao fundo, do lado este, do meu Bairro das Furnas. A minha escola primária era fronteira à da escola das raparigas, por detrás da capela.
Esta igrejinha estava situada no ponto mais elevado deste meu Bairro. O seu acesso passava por subir uma longa escadaria feita com pedras de calçada de cor branca. Ladeada por vários ciprestes de delicado trato pelo jardineiro.

Um outro acesso à escola era subir por um carreiro junto às hortas que começava no terreno que chamávamos de “campo de futebol”. Era um espaço existente do lado esquerdo, por detrás e um pouco além do Salão de Festas. É hoje ocupado por prédios um pouco antes do chamado Bairro dos Sargentos.

No ano de 1952, no meu primeiro ano de aulas, recordo que a escola dos rapazes tinha 4 filas de carteiras, comportando as turmas da 1ª, 2ª, 3ª e da 4ª classe.
Recordo ainda que a secretária da mestra estava colocada num estrado que me parecia muito alto. Na parede, por detrás desta secretária, uma ardósia também enorme, não chegando, q
uando chamado a prestar exercícios, os meus pequeninos braços, mesmo em bico de pés, ao meio desse quadro.
Como a recordo a jovem e bonita professora, sobretudo quando a sua face se apresentava rosada não só por irritada com os seus alunos.

A DISCIPLINA E ESTUDO NA ESCOLA DO MEU BAIRRO

Em tempos idos, era habitual dizer-se quando uma criança revelava uma atitude
de rebeldia e se a pretendia rectificar com uns açoites, estes eram justificados pela frase “de pequenino é que se torce o pepino”. Na maior parte das vezes resultava.
Corria o ano de 1954. A primavera chegara. No final das aulas, os alunos das turmas da 1ª,
2ª e 3ª classes, sequencialmente e de forma ordeira, lá iam saindo. A professora, como de costume, assistia de pé, posicionada e vigilante na frente da sua secretária.
O… “até amanhã senhora professora”… era acompanhado, de quando em quando, com um aceno de cabeça da mestra, em jeito de concórdia.
O interesse dos rapazes com a passarada nesta época do ano, não raras as vezes equipados com as fisgas, visco e na procura dos ninhos, deu razões à professora para que os alunos da turma da 4ª classe ficassem mais um pouco na aula e sentados.
A mestra pretendia anunciar que, no dia seguinte seriam feitas perguntas sobre a importância e o comportamento das aves, procedimentos insertos num dado texto do livro de leitura para esta classe.
Recomendara bastante o seu estudo, uma vez que iriam reler este importante texto e seriam feitas perguntas às quais a turma tinha que prontamente responder.
Todos os rapazes saíram satisfeitos. A lição escolhida pareceu-lhes fácil. De pássaros e dos seus comportamentos não havia ninguém quem melhor os conhecessem. Consequentemente, o estudo da lição e as recomendações da senhora professora foram colocados como algo desnecessário por certezas mais que evidentes.

No dia seguinte, a mestra, no tempo do questionário verbal sobre a lição recomendada no dia anterior, apenas teve tempo para fazer a primeira pergunta, o resto do tempo foi destinado e ocupado por uma série de 3 reguadas em cada mão dos alunos da 4ª classe. Castigo infligido, pelo raciocínio ora confirmado, de que ninguém tinha estudado a lição como ela recomendara.
Mas que pergunta foi feita que os seus alunos da 4ª classe não souberam responder, ou melhor, que eles responderam rápido… mas erradamente? Simplesmente…de como se chamava…a fêmea do pardal…! A que todos “sabiamente” responderam…”pardala”…! Quando na verdade deviam ter respondido…pardaleja ou pardaloca...
“Pardala” não constava da lição nem sequer existia (existe) no dicionário da língua portuguesa.

DO ÓDI
O AO OLEO FIGADO DE BACALHAU…

Quem não se lembra daquela mistela castanha a que davam o nome de óleo fígado de bacalhau. O óleo fígado de bacalhau, era servido numa colher da sopa na cantina escolar antes das refeições dos alunos e, era tido e considerado como complemento alimentar.
Ao contrário de muitos outros alunos da minha escola, felizmente eu não passava fome! Os meus pais, muito pobres, procuraram sempre que o seu menino tivesse, em termos de alimentação, o melhor que a vida lhes permitia dar, mas longe de dispensarem as refeições que a escola oferecia aos seus alunos.
Se
era um facto que a sopa ingerida na escola era na grande parte das vezes bem-vinda, já não o era o óleo fígado de bacalhau.
Como eu recordo o sacrifício de tal ingestão. Quantas tentativas falhadas para fintar a contínua “carrasco” por tais obrigações. O processo alternativo era rapidamente comer de seguida 3 ou 4 colheradas da sopa servida, caso contrário os vómitos acompanhados de um ou dois estalos não se faziam esperar.

…AO ENCANTO PELOS JOGOS DO FUTEBOL

Marcante também foi a “festa da rija” por derrotados em duas frentes!
Como já acima se disse, o nosso “campo de futebol”, estava situado em paralelo com a Rua das Furnas, logo abaixo da colina onde a escola se situava, por detrás do Salão de Festas.
A nossa equipa era constituída por alunos da 4ª classe e estava a perder com os eternos rivais alunos do Pedro Santarém.
O empenho era tanto que mal ouvíamos a contínua Palmira
…meninos venham para cima…! …meninos venham para cima…!
Pois há muito que o horário, marcado para as aulas no período da tarde, tinha sido ultrapassado.

Ao lado da contínua Palmira a mestra já com as faces ruborizadas, com o cabelo enrolado em jeito de carrapito, de bata branca com mãos atrás das costas, assistia incrédula à indisciplina dos seus alunos da 4ª classe que, muito tristes, a pouco e pouco, desistiam de jogar desmotivados, por um lado, pela impossibilidade de recuperar os golos sofridos e, por um outro lado, pelas consequências disciplinares que se adivinhavam, às quais já não podiam fugir.
Nesse dia, a maior parte de nós sujos e suados, nem sequer tivemos a oportunidade de nos sentarmos nas carteiras. E para exemplo dos prevaricadores e sob o olhar atento dos alunos das restantes turmas as reguadas mais uma vez foram postas em prática.

RETRATOS DA VIDA DE UMA PROFESSORA QUE ADORO E QUE JAMAIS A ESQUEÇO

Mas quem era, quem é esta professora que eu adoro e que já mais esqueço?
A professora Maria Helena, em recentemente encontro no Centro Comercial das Amoreiras, em Lisboa, onde esteve presente um outro seu antigo aluno – o José Fernando - também ele professor jubilado e licenciado em Pintura, deu para saber que esta amorosa personagem, já considerada por mim morta, é natural de Lisboa da Freguesia de S. Cristóvão. Se bem que tenha crescido e vivido, durante praticamente toda a sua vida, na freguesia de Santa Isabel, lá para os lados de Campo de Ourique.
Esta Mulher que me ensinou a juntar e a interpretar as letras, que eu adoro, não devo nem a quero esquecer. Por grato e motivado pelas boas recordações da escola do meu Bairro das Furnas.

A professora Maria Helena que já me deu a possibilidade de a recordar em outros escritos, nasceu em Julho no ano de 1927. Seus pais, para que a sua única filha pudesse concluir o magistério primário, tiveram que a emancipar aos 18 anos de idade. Em Outubro do ano de 1946, já professora, com 19 anos de idade, foi colocada por concurso, na escola primária do Bairro das Furnas. Local onde dedicou toda a sua vida a ensinar a ler e a escrever os rapazes deste “seu” bairro.

Hoje, com 84 anos de idade, não perdeu a vivacidade e firmeza que lhe conheci enquanto jovem. Já alguns traços de rugas na face bem vincados são certos, com aquele cabelo branco que outrora não estava ali. Aos meus olhos, vejo-a irradiar saúde e felicidade. A sua memória, ao relembrar os rapazes das suas aulas, fez inveja a este seu antigo aluno e certamente ao companheiro também presente na conversa, o José Fernando.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

ERA DAS MOÇOILAS MAIS BONITAS E OS SEUS OLHOS AZUIS ERAM OS ÚNICOS NA SUA ALDEIA


Nunca precisei da luz do luar para ver a estrela que havia em ti.
Nunca precisei da luz do dia para ver a tua imagem pura da mulher que me gerou. Como me sinto feliz por conservar saudades da minha Mãe.


Era um encanto os olhos da Senhora minha mãe.
Os olhos da vossa avó/bisavó a todos encantavam por onde passava, direi mesmo que eram a sua “marca d’àgua”. A vossa avó/ bisavó era uma mulher de personalidade muito forte, trabalhadora, mas sacrificada na vida. Adorava os filhos, procurando sempre ultrapassar as adversidades da vida que, foram muitas, para que nada lhes faltassem. Para os outros, com quem vivia de perto, havia sempre um dichote brejeiro. Era muito galhofeira, todos a adoravam naquele velho Bairro das Furnas.

Ainda não há muito tempo, quando dirigia palavra a uma sua vizinha no bairro dizia vaidosa a minha irmã vossa tia…Este é o filho da “Tia Georgina” … Ah pois é! Responde a sujeita depois de me reconhecer…Oh Raul que saudades eu tenho da tua mãe, parece que a estou a ver no Carnaval, mascarada e divertida com todos…

A vossa avó/bisavó, era pequenina na estrutura física, mas a sua forma de estar na vida era de desenvoltura e de audácia no enfrentar dos problemas.
Seus olhos eram azuis cor do céu! A sua neta mais velha – Madalena – foi a única que teve a benesse desta herança genética.

Quanto eu mais a olhava, mais encantado ficava com o brilho que aqueles olhos azuis irradiavam. Quando comigo zangada, que muito acontecia, os seus olhos um nada entortavam, mas não perdiam a sua beleza. Esta mulher nascida e criada na chamada zona saloia, em redor de Lisboa, mais propriamente em Montachique. Era a mais nova dos 9 irmãos (4 rapazes e 5 raparigas). Morreu há 24 anos no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, com 82 anos de idade.

I – A VIDA NA ALDEIA DE MONTACHIQUE

Nasceu em 1905. Seus pais, Joaquim Lourenço e Damascena dos Santos, deram-lhe o nome de Georgina dos Santos. Baptizaram-na na Igreja Matriz de Fanhões, no Concelho de Loures. Não foi à escola. A família vivia muito pobre. Comiam
do que o terreno baldio lhes dava.
As moçoilas, suas irmãs, lavavam e “coravam ao sol” as roupas dos senhores da grande cidade.

A vida da vossa avó/bisavó é-lhe madrasta desde muito nova. Com 9 anos de idade, em 1914, estoira a 1ª Grande Guerra Mundial, a falta e o racionamento dos bens de primeira necessidade começa a ser uma evidência muito forte. Três anos mais tarde, incorporado no primeiro contingente de soldados portugueses, vê partir da sua terra natal, para a guerra na região da Flandres francesa, um dos seus irmãos. Os outros três são sucessivamente chamados para servir o regime militar obrigatório mas já não foram à guerra. Dois outros irmãos (um rapaz e uma rapariga) de forma dramática desistem de viver ainda muito jovens.

Ainda criança, já lavadeira como as demais raparigas na terra, lavava a roupa numa ribeira por perto. Ficava encantada quando chegava o dia de auxiliar o carrego das trouxas, com as suas irmãs, para as galeras que as levavam a um dos paradeiros da cidade, mais propriamente ao Poço do Borratem, junto à Praça da Figueira, onde pernoitavam, tendo por companhia, por perto, os animais que as transportavam.

II – O ABANDONO DA SUA TERRA NATAL E O ENCONTRO COM A CIDADE

A vossa avó/bisavó era das raparigas mais bonitas de Montachique. Era a única, com os olhos da cor do céu. Aos 22 anos apaixona-se. Dessa paixão, aos 23 anos, nasce o primeiro filho, o Fernando, hoje já falecido. Ao confrontar-se a ficar mãe solteira, dado que o seu enamorado negou perfilhar o rapaz e assumir as responsabilidades do matrimónio, desgostosa, resolve abandonar a sua aldeia com o intuito de conseguir, na cidade, melhores oportunidades de trabalho com vistas ao sustento do seu filho, entregando-o temporariamente aos cuidados e à responsabilidade dos seus pais. E com a bênção destes, parte para Lisboa nas galeras que transportavam as trouxas. Já na cidade, valeu-lhe uma outra moçoila de cor preta, serviçal de um capitão, a quem há muito recebia e entregava, no paradeiro, a roupa da casa deste oficial.

A Antónia, assim se chamava a sua amiga, ao ver a vossa avó/bisavó sofredora
e chorosa, logo se prontificou a ajudá-la e a interceder junto do militar superior. Sendo que, nesse mesmo dia, a Dª. Georgina, ficou a ser colega desta sua grande amiga, na casa deste capitão, lá para os lados das Amoreiras.

Esta linda “criada de servir” de olhos azuis cor do céu, não passou despercebida a um rapaz moreno e bem pa-
recido que, dava pelo nome de Adriano Pica Sinos, vosso avó/bisavô, também morador na mesma freguesia de Stª Isabel. Daqui a levá-la para a barraca que construiu ou alugou no Casal do Louro nº 30, na Estrangeira de Cima, em Alcântara, foi um ápice. E, No ano de 1933, já com 28 anos de idade, para agregar ao seu companheiro e ao regressado, há muito, seu filho Fernando, já com 5 anos de idade, presenteia-os com o nascimento de uma outra criança, a minha irmã/vossa tia Helena.

III – OPERÁRIA, A VIDA SOCIAL E FAMILIAR

Mais tarde faz-se operária na “Fábrica das Colheres”, no 200 da Rua da Junqueira, às Janelas Verdes. Um acidente, com a máquina de moldar o estanho, marca-a para toda a vida. “Esqueceu-se” de retirar da guilhotina o dedo indicador da mão direita. Sendo certo que esta deficiência não a coibiu, após sair da fábrica, ser servente, com a função de partir pedra para as calçadas e passeios de Lisboa, numa das pedreiras em Alcântara.

No ano de 1935, estoira a guerra civil de Espanha. Em consequência dificilmente os parcos escudos que os vossos avós/bisavós recebiam, mal chegavam para adquirir os alimentos necessários para o sustento da família. Com a manutenção do racionamento dos alimentos imposta pelo governo, a vida complica-se ainda mais. O seu filho – Fernando – contrai a doença do peito (tuberculose) e, é novamente entregue aos cuidados da avó materna, a Dª. Damascena dos Santos, em Montachique.

Em 1939, o desgosto mais uma vez se instala na família. O Manuel Custódio, um outro filho da avó e do avô Adriano, morre de uma pneumonia aos 5 meses de idade. A mágoa é enorme e, como as desgraças não fossem suficientes, ao vosso avô/bisavô, é-lhe diagnosticada a doença de esclerose múltipla.

I
V - MUDAM-SE OS RUMOS, MUDAM-SE AS VONTADES

Dois anos mais tarde, por via da atribuição de uma casa de renda social ao vosso avô/bisavó, que era cabouqueiro e funcionário público da C.M.L., a D
. Georgina, com o seu companheiro e com a menina filha do casal, deixa a barraca, em Alcântara, para passar a viver no Bairro da Quinta da Boa Vista, em Benfica.
Aos 36 anos de idade, em 1 de Junho de 1941, contrai o matrimónio na igreja de Benfica. E, quando em 1942, consegue emprego na Comissão Reguladora do Laboratório dos Produtos Químicos e Farmacêuticos, ao Calhariz de Benfica, como servente e lavadeira, obviamente deixa a fábrica e o partir da pedra para outros.

Porém nem tudo é melhoria. A doença do seu companheiro, aliada à pobreza que afecta a todos os trabalhadores, sobretudo em Lisboa, constata, verifica, que o seu marido, vosso avô/bisavô, elege o vinho como “bom analgésico” para as dores que trás no corpo e, quiçá ”permitir-lhe o esquecimento” das amarguras do dia-a-dia. O constante “bambolear no andar” começa a ser preocupante. A D. Georgina sofre e muito.

De todo o modo a vida continua. Em 1945, a 13 de Dezembro de 1945, contrariamente ao que a vossa avó/bisavó pensara ser um mioma (tumor benigno no útero), por inchasso crescente na barriga, era uma nova gravidez, neste caso o vosso pai/avô, Raul Pica Sinos.

A família aumentava e as condições de habitabilidade dão-se por insuficientes. Então foram criadas as condições para junto da C.M.L. concorrer a uma nova casa social, com mais uma divisão (T3), num bairro de casas desmontáveis, recentemente construído, na Quinta das Furnas, bairro esse que ficava junto ao Jardim Zoológico – o que veio a acontecer em Outubro de 1948 –.



V - MELHORAM AS CONDIÇÕES DE HABITABILIDADE, MAS AS DA VIDA TARDAM



É muita a dureza do trabalho. Pela madrugada, às 05.30 horas, começava os seus afazeres com a limpeza no Laboratório ao Calhariz de Benfica. Acabadas as tarefas, quando chegava a casa, por volta do meio-dia, fazia o almoço para a família. Às 15.00 horas, no lavadouro social do bairro, começava a faina das
lavagens, do estender e do apanhar, depois de seca, a roupa e os atoalhados que trazia do laboratório. Já noite tinha lugar o cozinhar. Depois do jantar, não raras as vezes, ficava silenciosa, sentada/debruçada na mesa pela noite dentro. Era visível o seu sofrimento pela má sorte na vida, quer por via da dureza profissional, quer por via dos afazeres domésticos.

Não obstante os dias passam! O vosso avô/bisavô começava, com o agravar da doença (esclerose multiplica), cada vez mais a encontrar na bebida “agasalho” para as tristezas do seu dia-a-dia. Situação que motivava grande desgosto à D. Georgina. Originando, com muita frequência, discussões e desavenças deveras complicadas.

Os pobres não tinham alternativas, procuravam esquecer os “amargos na boca” e as mágoas, conforme a vida lhes permitia. Contudo e com o crescimento da família, a pouco-e-pouco, a vossa avó/bisavó, procurando fugir ao entristecimento, organizava, a custo, a lida da casa com vistas a viverem o melhor que podiam.

Em 1949, casa com 16 anos de idade, a sua filha Helena. Em 1951, nasce a sua 1ª neta – Madalena. Quatro anos mais tarde, nasce uma 2ª neta – Gina. Ainda em 1955, por razões de melhores condições de habitabilidade, a sua filha Helena, deixa o bairro das Furnas. Em 1958, com 13 anos idade, o seu filho Raul passa a trabalhar na Robbialac Portuguesa. A casa da vossa avó/bisavó fica mais vazia e, desta oportunidade, reivindica e consegue um quarto só para si. Passa a dormir sozinha.



VI – COMO NAS MOEDAS, TAMBÉM A VIDA TEM DUAS FACES



A vossa avó/bisavô, para desanuviar as tristezas que a assolam, desafiada pelas suas grandes amigas e vizinhas da mesma rua do Bairro – a Ilda dos “Óculos”, a “tia” Carolina, a Rosa, a Esperança, a Mª do Carmo, entre outras, inscrevia-se, com o marido e o filho Raul, em passeios que, eram pagos em prestações pecuniárias ao longo do ano. Estas excursões eram sobretudo ao norte do país e tinham como duração de 5/8 dias de viagem. Eram no verão, nos poucos dias de férias que se conseguia. A maior parte das refeições eram confeccionadas junto das camionetas que as transportavam que eram da pertença da Cooperativa

Lisbonense de Chauffeurs – “Palhinhas”. As dormidas do pessoal, eram dentro ou fora das mesmas, enrolados em mantas.

Outros motivos de regular distracção da D. Georgina e amigas, sobretudo da Ilda dos “Óculos e da Esperança, também eram, nas noites de verão, algumas “saltadas” à Feira Popular, localizada à época, no Parque José Maria Eugénio, na Praça de Espanha. A barraca dos “espelhos” era visita obrigatória. Esta barraca provida de espelhos que deformavam o corpo, também estava equipada com altifalantes para o exterior, permitindo ouvir, a quem passava, o gargalhar no interior. As risadas destas “folionas” eram tantas que não raras as vezes, outras entravam para se juntarem à “festa”.

Também pelo Carnaval a vossa avó/bisavó não perdia um dia da folia. Sempre mascarada, por vezes com a farda do trabalho do marido, com a vassoura pelas costas. Enfiava na braguilha uma cenoura, fazendo rir a bom rir quem por ela passava. Como aquela gente a adorava. Sobretudo a juventude que a cumprimentava sempre com um beijo.

Mas nem tudo eram sorrisos. A doença do vosso avô/bisavô agrava o seu estado de saúde físico e mental. É dado como incapaz para o trabalho. No ano 1962, pela força, é internado no hospício do Telhal

VII – CHORAM-LHE OS OLHOS AO VER PARTIR O SEU “MENINO” PARA A GUERRA



Em Março do ano de 1966, já com 61 anos de idade, a sua coragem enfraquece quando vê o filho Raul ingressar nas fileiras do exército. Um ano mais tarde, mais propriamente em Abril de 1967, ao saber que o seu “menino” está mobilizado para a Guiné, corre ao encontro do Mário para que este interceda junto de alguém (?) com vistas a anular a guia de marcha para a guerra. Sem êxito.

O Mário era preto e bem constituído! Era funcionário público, desconhecendo o autor em que serviço estava colocado e o que fazia. Era filho da Dª Antónia, sua grande amiga e colega enquanto criada de servir. Foi esta sua amiga que valeu à Dª. Georgina por ocasião do abandono da sua terra natal quando moçoila. A Dª. Antónia, também já vivia no Bairro das Furnas, na Rua dos irmãos Nina e Lélé, mesmo ao lado do revisor da CP, o Sr. Caixinha.

O Mário, filho mais velho da Dª. Antónia, também chamava de “mãe” à vossa avó/bisavó. Ao que se julga saber, tal carinho advinha de acontecimentos em períodos passados quando ele, miúdo, a visitava na barraca em Alcântara. A vossa avó/bisavó possuía um “par” de galinhas e uma cabra da qual extraía o leite para a família. Quando o Mário dizia que tinha fome, deixava-o mamar nas tetas da cabra até se saciar. Gesto que nunca esqueceu por agradecido.

É no cais de Alcântara, que mais uma vez os seus lindos olhos azuis choram de tristeza. Este cais, outrora local de giro, em algumas tardes de domingo, com a sua filha Helena, é agora palco para ver muitos meninos partirem para a guerra. E o seu vai também. A dor mais uma vez se instala naquele corpo pequenino e já ligeiramente curvado da idade.

VIII – RUA DOS PLÁTANOS Nº 14, UMA CASA CHEIA DE SAUDADES



À D. Georgina, já há muito é uma mulher reformada. O seu marido está internado na Casa de Saúde do Telhal sem recuperação possível. O seu “menino” está lá muito longe na guerra colonial. Vale-lhe como companhia a sua amiga Dª. Esperança, as vizinhas da sua rua dos Plátanos e a gata – a Zaruca –.

Visita assídua da casa passa também a ser também uma jovem de 20 anos, a Mª Emília, hoje vossa avó, e à época namorada do seu filho Raul e sua futura nora, trazendo-lhe, de quando em quando, as notícias em cartas que chegam da Guiné.
Em 1968, mais propriamente no mês de Dezembro, o corpo do marido passa a descansar em paz no cemitério de Benfica. E como de desgraças já bastassem, para sua distracção, começa a ser visita assídua do Jardim Zoológico. Distribuindo, aqui-e-ali, pedaços de pão, já duro, pelos animais, sendo-lhe atribuído pela Direcção do Zoo um cartão de benemérita, o que lhe permitia entrar no recinto, no horário das visitas, sem nada pagar.

Mas embora mais velha, a vida vai mudando felizmente para melhor. Em Março de 1969, o seu menino Raul regressa, são e salvo da Guiné. E os preparativos para o casamento do seu filho agora regressado, não se fizeram esperar. No dia 5 do mês de Maio desse mesmo ano acontece festa rija na aldeia do Pombalinho, lá para os lados da Golegã. A sua nora, a Mª Emilia, Uma das suas “filhas da terra” opta por casar na sua pequena capelinha. Ao contrário do que aconteceu no casamento da sua filha Helena, a presença da D. Georgina, foi bem notada em toda a cerimónia. Desta vez a confecção da boda e do abrilhantar das mesas coube a outros.



IX – NETAS, BISNETOS E UMA NOVA CASA



A sua filha Helena já lhe tinha dado 2 netas, a Madalena e a Gina, que a amiúde a visitavam no seu velho Bairro das Furnas. O seu filho Fernando, a viver no Bairro de Stª Cruz em Benfica, também já tinha contribuído para o aumento da família ao dar-lhe 2 netos e 2 netas – o Amadeu, a Fernanda, o Fernando e a Cristina. Faltava agora o seu rapaz que, casado, saiu de sua casa para ir viver um pouco mais acima, no Calhariz de Benfica, na antiga casa dos seus compadres, dizendo a D. Georgina, não poucas as vezes…não quero morrer sem ver os filhos do meu Raul... Prece que foi atendida por muitos bons anos.

3 Anos mais tarde, no ano de 1972, nasce a primeira neta filha do seu Raul,

a Ana Sofia, vossa mãe (do Luís e da Inês) e tia (da Lara). Neta que não a viu só nascer como a ajudou a criar, ficando inclusive à sua guarda durante e no horário em que os pais trabalhavam. Também a acompanhou durante 2 anos no trajecto da ida e no regresso à escola primária do velho Bairro das Furnas.



Há muito que se falava da construção de um novo Bairro das Furnas. O velho bairro, construído com paredes de lusalite cinzentas, foi inaugurado em 1946. Era tido como um “bairro provisório de casas desmontáveis”. Provisoriedade que só cerca de 30 anos mais tarde acabou, realojando-se por fases os moradores. Agora, no ano de 1976, os/as prédios/casas de construção em cimento e de tijolo, no primeiro grupo de moradores a ser realojado a sul do bairro, a D. Georgina estava incluída, ficando doravante aos cuidados da sua filha Helena, agora com ela novamente morar.



Corria o ano de 1978, quando a sua neta Madalena lhe dá a primeira bisneta, a Susana. Em 1979, cabe a vez da sua neta Gina de lhe dar mais um bisneto, o José Pedro, não parando, como natural, a família deixar de aumentar. Em 1980, do seu filho Raul, nasce mais uma menina, a Catarina.

Quando alguém perguntar quem foi a vossa avó/ bisavó, digam que foi uma das raparigas mais bonitas da sua aldeia natal e a única com os olhos azuis cor do céu. Digam que foi uma mulher pobre, sacrificada mas honrada na vida. Foi uma mulher de personalidade muito forte e trabalhadora. Adorava os filhos, netos e bisnetos. Morreu a 19 de Março do ano de 1987, no “Dia do Pai”, que descanse em paz.

As fotos:

A D. Georgina com 36 anos. Um grupo de lavadeiras (Google). A galera do filme Aldeia de Roupa branca transporte da roupa. Uma panorâmica do velho Bairro das Furnas. O Lavadouro do velho Bairro das Furnas do Livro “O Meu Bairro das Furnas”. A D. Georgina com a Ilda dos óculos. A D. Georgina no Jardim Zoológico. A D. Georgina com a neta Sofia

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