sexta-feira, 27 de abril de 2012

A MINHA FRUSTADA “FUGA” DA GUINÉ


Os 20 dias “desenfiados” não foram fáceis. Era muito o medo derivado à situação que criei! Com a agravante de, por uma ou duas vezes, chegaram perguntas do género …“quando regressas ao mato (Tite)?”... Perguntas feitas por graduados em passagem por Bissau.

Já sem os “ossitos” e, tirados os pontos, era vê-lo enfiado na lancha de borracha a toda a velocidade pelo Geba acima, mais bem amedrontado que no primeiro dia que cheguei.

O Capitão médico que esteve comigo deslocado em Tite, na Guiné-Bissau, era um homem de estrutura corpulenta e, parecia ter entre os 45/50 anos de idade. Apresentava-se todos ao dias indignado, não só por em desacordo com a guerra, mas sobretudo incomodado por ter sido obrigado a deixar para trás mulher e 2 filhos e, uma vida profissional estabilizada.

Acontece que, mais ou menos a meio da comissão, desconhecendo as razões das dores nos joelhos, resolvi questionar o meu camarada doutor que, segundo a sua observação, sem rebuço me disse: …As tuas dores derivam de ramificações ósseas (exostoses), que anatomicamente, nada têm a ver com o teu esqueleto. Acrescentando, …sem a operação, há o risco, com o crescimento das mesmas, da perfuração dos tecidos da carne…

Decorria o mês de Setembro do ano de 1968, recebo uma mensagem criptada e confidencial, dando nota que o Capitão médico, aquartelado em Tite, … tinha guia de marcha para se apresentar no Quartel-general (QG), em Bissau, aditando …a fim de ser indigitado diretor do Hospital Militar….

Dias passados, voltei a falar com o médico, perguntando-lhe …Doutor, quando estiver em funções no Hospital Militar, trata do meu problema…?

…Aguarda pela chamada...disse. Chamada esta que, não demorou 15 dias após a designação das novas funções.
Já em Bissau, no dia antes do internamento, encontrei-me com o médico, à noite, na esplanada do café Portugal. Convivemos bebendo umas cervejas. Discutimos problemas políticos; a saturação da guerra, no regresso a casa, etc. Pedindo-lhe, oportunistamente, a passagem de uma guia de marcha para ser operado em Lisboa.

A sorrir disse o médico …por minha vontade ias já camarada...

Concluindo: …Pica Sinos, sabes que nós, no hospital em Bissau, amputamos/cortamos, todos os dias e, em quantidade, dedos, braços e pernas, diz-me; … que justificação existe para não cortar, os teus “pequenitos ossitos” aqui em Bissau?
Fiquei ….”Lixado”! Embora soubesse que o meu camarada médico e, diretor do hospital, tinha razão, mas…
Operado ao primeiro joelho, uma semana depois da convalescença, na manhã de 01 de Novembro de 1968, foi-me passada guia de marcha para regressar a Tite. O documento anexo referia que, os pontos seriam retirados em 10 dias, no mato, na enfermaria do quartel. E que passados mais 10 dias teria que apresentar novamente no hospital, em Bissau, a fim de ser operado ao outro joelho.

Na noite desse dia, 1 de Novembro de 1968, ao saber que o aquartelamento, em Tite, estava a ser alvo de mais uma flagelação, desloquei-me à muralha do rio Geba, não conseguindo descrever com exatidão, o meu sentimento, ao saber da sorte dos meus camaradas naquela hora.

Infelizmente era hábito, muitos dos militares que paravam à noite pelos cafés, em Bissau, correrem para a paredão do rio Geba, no intuito de observarem os clarões e os estrondos dos rebentamentos, quando o aquartelamento era flagelado. O “espetáculo era sofrido, amargo, triste e revoltante”.

No dia seguinte sou conhecedor que os resultados foram devastadores, quer em termos corporais, (1 morto e 3 feridos graves evacuados) quer em termos materiais que, consequentemente me tirou toda a vontade/coragem para regressar a Tite.

Dito e feito, nessa mesma manhã em vez de apanhar o bote que me levava ao Enxudé, porto de mar que servia Tite, dirigi-me novamente ao hospital e pedi ao Cabo Silva (enfermeiro da área ortopédica) se podia passar as 20 noites naquela enfermaria, até me operarem ao segundo joelho?
Ao concordar, passei a….“Desenfiado”. (termo em calão que se aplica ao militar quando em falta no agrupamento)

Não se tornou difícil estar na situação de faltoso no quartel. O hospital não deu informação no aquartelamento do meu estado clinico e, eu dei nota que estava no quartel dos adidos à aguardar a marcação da segunda operação. A justificação foi aceite pela chefia hierárquica das transmissões e, era o que mais me interessava.

Tinha agora um segundo problema…. As refeições.
Podia dormir no hospital, mas comida “cá tinha”.
Valeram-me, quando não tinha dinheiro, os “putos do pé descalço” da minha infância – (o Tony, do Bº Grandela e, o Mané, de Campolide) – .
O primeiro enfiou-me durante 8 dias no “refeitório” de uma lancha de desembarque (LDG) da marinha que, estava ancorada em Bissau e, cujo comandante estava em férias em Lisboa.
O segundo, no resto do tempo, foi no refeitório da Policia Militar no Quartel-general.

Não se pense que os 20 dias “desenfiados” foram fáceis. Era muito o medo derivado à situação que criei! Com a agravante de, por uma ou duas vezes, chegaram perguntas do género …“quando regressas ao mato (Tite)?”... Perguntas feitas por graduados em passagem por Bissau. Mas como me viam coxo lá iam “engolindo”.
Concluindo: Dias depois, já sem os “ossitos” e, tirados os pontos, era vê-lo enfiado na lancha de borracha a toda a velocidade pelo Geba acima, mais bem amedrontado que no primeiro dia que cheguei.

Foto: Antigo hospital em Bissau, agora em ruinas

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