quarta-feira, 17 de abril de 2013

HISTÓRIAS DO MEU VELHO BAIRRO DAS FURNAS (XXXVII)



NÃO SÓ FLOREJAVAM AZEITONAS

… Nos seus troncos, as cigarras vibravam as membranas em dias de sol…
… No Outono as suas delicadas, vistosas azeitonas, eram bem pretas e brilhantes…
… A rua onde crescera e certamente morrera, não tinha nome…
… Nas festas dos santos populares, tinha como companhia ateada fogueira…
… Uma noite, a linguagem várias vezes se elevou, ignorando-se quem desejava dormir…
… Ou se calam ou tomam banho antes de sábado…

O velho Bairro era rico em oliveiras. Rara era a rua que não as tinha. Sendo que, naquela onde mais abundavam tão robustas árvores  deram-lhe justamente o seu nome; rua das Oliveiras. Ficava bem no alto da colina, paredes meias com a capela. Hoje, não há gente que, não se lembre, do canto das cigarras quando vibravam as suas membranas em dias de sol. Ou de ver subir às pernadas, a miudagem, quando um ninho de um qualquer pássaro era avistado.

De todas estas árvores decenárias, havia uma, que, alguns de nós miúdos, já adolescentes, lhe dispensávamos particular atenção. Não tanto pela sua altura, a ultrapassar o telhado da casa em sua cerca. Não tanto pela beleza das flores despontadas na primavera, rodeadas de folhas verdes acinzentadas na frente, prateadas e brilhantes por detrás. Ou no Outono as suas delicadas, vistosas azeitonas, bem pretas e brilhantes. Não, não era por isso. Era, fundamentalmente pelo local onde estava enraizada, porque, escondia e bem, quem nela se abrigasse.
A rua onde crescera e certamente morrera, não tinha nome, mas não distava meia dúzia de metros do meio da Rua Eng.º Gomes de Amorim.
Começava na casa do Sr. José, marido da Ti Belmira, pais do Toni e da Cármen, bem na esquina da Rua das Tílias. A rua, sem nome, de norte para sul, atravessava, umas quantas outras ruas, na direcção ao lavadouro comunitário, onde perfilavam muitas das suas “irmãs”.
Esta “vaidosa” oliveira, estava praticamente “colada” à casa onde vivia o José Macedo, irmão do Valdemar.
No outro lado, avistava-se a porta do quintal da casa do Sr. Raul Caetano e, da sua mulher a Ti Julieta.

Neste cruzamento, bem no centro, quando nas festas dos santos populares, tinha como companhia ateada fogueira. A chama, aqui, era a mais brilhante das noites festivas. Era o fogacho privilegiado das moçoilas. Na oportunidade, alguns rapazes, disfarçadamente se empoleiravam nos troncos, para melhor verem, quando saltavam, as pernas das raparigas.

Ou ela não usa calças/Ou as tem na lavadeira
Dei por isso ontem à noite/Quando saltava à fogueira

Quantos fugazes beijos, escondidos, a nossa decenária oliveira “observou”.
Quantas animadas cavaqueiras, noite dentro, “ouviu”.
Quantas noites, os rapazes espiou, nas proibidas “jogatinas”.
Quantas vezes, por brejeiras conversas, “ruborizou”.

Dizia-se, em crença popular; quando se viam as raparigas a apanhar um pezinho com 3 azeitonas pretas do chão, tinham como intenção, o colocar debaixo do travesseiro da sua cama, na esperança de sonhar com o rapaz que, pretendiam namorar.

Uma noite, não sei precisar o dia e a hora, mas certamente muito tarde, a linguagem da rapaziada, no calor da discussão, várias vezes se elevou, ignorando-se, por perto, quem desejava de dormir.

De repente, eis que, uma voz bem forte, ecoou na noite já alta:

…Basta seus malandros…Não se pode dormir nesta casa…Eu vos digo…

Assustados, em segundos, num ápice, os calcanhares depressa tocara os traseiros em fuga.
Era a Ti Julieta, mulher do Sr. Raul Caetano que, se apresentou encolerizada, na porta do seu quintal, de camisa de dormir e, de balde de zinco na mão, rematando:
 
…Ou se calam já e, desandam rapidamente daqui para fora, ou tomam banho antes de sábado…

Podiam ter transplantado esta linda decenária para outro local, a exemplo do que fizeram com parte das oliveiras que existiam nos “tanques”, presentemente (pouco estimadas) no mesmo local com o nome de rua Alcina Bastos.

Não desfrutou dessa sorte.


Foto 1  A oliveira em referência
Foto 2 As oliveiras perfiladas nos “tanques”
Foto 3 O presente local com parte das oliveiras dos tanques

quarta-feira, 3 de abril de 2013

HISTÓRIAS DO MEU VELHO BAIRRO DAS FURNAS (XXXVI)


 A VIDA E A HABITAÇÃO NO TEMPO EM QUE VIVERAM OS NOSSOS PAIS E AVÓS

Os ricos continuavam a ir à mercearia… Para os pobres há racionamento…
…Vive-se em barracas, sem qualquer condição de habitação…
…O nosso velho Bairro das Furnas, é inaugurado a 28 de Maio de 1946, os menos “distraídos” sabem o porquê da data…
…A selecção das famílias tem que ter um certo nível económico e moral…
…Em caso de escândalo público procede-se à expulsão dos elementos nocivos…

Entre 1933 e 1974, sabemos ter sido o período da vigência do chamado Estado Novo. Regime político autoritário, conservador, nacionalista e corporativista que, direi, numa só palavra, fascista! Fundado por Salazar com a constituição do ano de 1933. Após a sua morte, em 1968, foi seu discípulo, Marcelo Caetano.
É importante que se saiba que, neste período negro, foi recusada aos portugueses a soberania popular, apenas se discutiam as propostas de lei do Governo. Impedia-se a realização de eleições livres. O objectivo era preservar a existência de um único partido, a União Nacional, cujo presidente era o ditador.
Os sindicatos são constituídos de cariz profissional e, controlados pelo Estado. As greves e as manifestações são proibidas. A imprensa escrita e falada eram censuradas, assim como; os espectáculos, o cinema, as artes plásticas, a música, os livros, etc.

Os racionamentos dos bens alimentares de 1ª necessidade, foram acções propositadas, para abastecer os aliados fascistas (Hitler, Franco, Mussolini, entre outros), obrigando o povo português a viver na maior das misérias. …Os ricos continuavam a ir à mercearia, porque podem pagar os preços altíssimos praticados. Para os pobres há racionamento, cada pessoa tem direito a quantidades exíguas de azeite, banha, arroz, açúcar, bacalhau ou batatas…
Do livro Os Anos de Salazar (5)

A igreja e o regime caminhavam lado a lado, sustentando a trilogia defendida pelo governo “Deus, Pátria, Família”.
As lutas por melhores condições de vida, dos operários e outros trabalhadores, desenvolvem-se. São presos às centenas por todo o país.
A partir de 14 de Setembro de 1936, quem quisesse trabalhar na função pública, tinha que assinar uma declaração de “repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas”. Do Livro os Anos de Salazar (4).
Por temor, ou com o receio de represálias, muitos aceitaram, outros, aos milhares, recusaram com dignidade e coragem.

O descontentamento da população, por via do desemprego e da repressão continuava a muito. Vive-se nas piores condições de vida, com fome, sem assistência médica, sem dinheiro, com os bens de 1ª necessidade racionados por todo o país.

O Governo, no intuito de “abrilhantar” o regime e, procurar “calar” o desagrado dos operários, dos desempregados e, também uma grande franja de funcionários públicos, sobretudo nas grandes cidades, (por exemplo, Lisboa e Porto), a viverem em barracas, sem quaisquer condições de habitação, desenvolve um vasto programa de obras públicas, nomeadamente; hospitais, cadeias, tribunais, escolas, novas rodovias, etc., criando algum emprego, mas mesmo assim, obrigando, com as empresas contratadas, a praticar uma política salarial que, não alterasse o nível de vida pobre, ou seja: na defesa de baixos salários.
É neste retrato, muito resumido do quadro político, económico e social que, os nossos pais e avós viveram.

REQUISITOS FAMILIARES PARA O INGRESSO NO NOSSO VELHO BAIRRO

Na época, e, em acordo com a mesma filosofia política, o nosso velho Bairro das Furnas, classificado, como outros já antes construídos, de “casas desmontáveis”, resulta de um plano da Câmara Municipal, financiado a fundo perdido pelo governo. Este plano veio a concretizar, algum realojamento da população citadina, a habitar em barracas, onde proliferavam muitos funcionários públicos e, outros trabalhadores que, os novos empreendimentos desalojou.
Com pompa e circunstancia, é inaugurado a 28 de Maio de 1946, mas só começado a ser habitado 2 meses mais tarde, percebendo os menos “distraídos”, o porquê da data.

…Estes bairros (casas desmontáveis) permitem seleccionar as famílias que, depois, vão ocupar as casas de categoria superior…
…A selecção das famílias vai-se fazendo, à medida que, vão atravessando gradualmente os bairros, até atingirem um certo nível económico e moral, altura em que, estão aptas a ingressarem nos bairros de casa definitivas…
(do livro O Nosso Bairro)
A lei classificou o bairro, em termos do rendimento familiar, em 2º lugar.
Classificados em 1º lugar, de nível económico inferior, consagrou os Bairros da Quinta da Calçada e da Boavista.
Em 3º lugar, com rendimento familiar mais elevado, aparece o Bairro do Caramão de Ajuda. Mas, …Para as famílias habitarem no nosso velho Bairro, para além da “superioridade” do factor económico, foi acrescentado da “superioridade” do factor moral, assim:
 …Ser casado pelo menos pelo civil.
- Quer dar-se, a par do nível superior, a sua dignidade como casados, e como pais -

O CONTROLO DA ACÇÃO SOCIAL E A RONDA DOS “BUFOS”

Logo após a inauguração, visando a gestão, civil e administrativa, foi constituída, uma Comissão - Administrativa e de Acção Social – onde os legionários da Legião Portuguesa, os fiscais da P.S.P e, as assistentes sociais, tinham várias atribuições, não faltando o controlo do comportamento dos moradores.
Assim:

…Em caso de escândalo público, ou de desmoralização evidente, a assistente social pode propor à Comissão Administrativa, a saída daqueles membros que estão a fazer mal ao Bairro. A Comissão de acordo com o Centro (Social) procede, então, à expulsão desses elementos nocivos…
…Quando há necessidade, dos rapazes e raparigas, serem colocados em tutorias  reformatórios, ou casa de regeneração…a família é aconselhada interná-los, no Reformatório do Bom Pastor de S. José, em Viseu.
…Quando são elementos que podem prejudicar a moralidade dos outros habitantes, não devem residir mais ali (no Bairro) e são convidados a sair…
(do Livro O Nosso Bairro)

A privacidade era obrigatoriamente exposta. Para além do factor económico estavam sujeitos a informar, para registo, a sua vida social, moral e religiosa.

Continuando:
Era sabido que, quando havia suspeitas de não terem sido observadas, por moradores, as regras instituídas, não se podia vetar a entrada do vigilante nas casas.

Entre outras, havia as seguintes regras:
 - Não haver colocadas mais torneiras de água, para além das permitidas (chaminé, casa de banho e chuveiro), porque, pressupunha-se, se houvesse mais torneiras, haveria mais gastos de água.
- Com a energia eléctrica  para não exceder o consumo estipulado, não eram autorizadas quaisquer extensões da luz da sala de entrada, para as restantes divisões. Recomendava-se o uso do candeeiro a petróleo. Durante o dia, com a justificação: para evitar desleixo e abusos. A casa fica bem iluminada com a luz do sol entrando a jorras através das janelas (do livro O Nosso Bairro)
Referir, no caso da energia eléctrica  era fornecida no mesmo horário da iluminação pública e, a única lâmpada que havia era a da sala de entrada. Não podia ter uma voltagem superior a 25W. Obviamente, as telefonias, quem as podia possuir, só podiam funcionar a pilhas.
– Sem a devida autorização da Comissão Administrativa, não era permitido receber nas casas (pernoitar) quaisquer pessoas que não fizessem parte do seu agregado familiar.
(do livro O Nosso Bairro)
– Não era permitido que os moradores possuíssem cães, gatos nas suas residências ou, criação de animais de capoeira, justificado por, para evitar maus cheiros, falta de limpeza e aglomeração de insectos, que tornava as habitações insalubres.
(do livro O Nosso Bairro)

Pobre sofre!
Abril, Sempre, Fascismo nunca mais!

Fotos:
1- Filas para aquisição das senhas de racionamento Arquivo particular Dr. M. Soares
2- Bairro das Minhocas Arquivo C.M.L.
3 – Fachada da entrada do Centro Social do Bº das Furnas do livro O Nosso Bairro