sábado, 31 de março de 2012

COMO ERA BONITO O COMPASSO, EM DOMINGO DE PÁSCOA, NO MEU VELHO BAIRRO DAS FURNAS XVII

…Era pela manhã que se ouvia o som constante da sineta a anunciar o compasso, accionado pelo Sr. José – o jardineiro -. Com uma opa vermelha vestida.
Atrás, de traje igual, - o sacristão -, o Sr. Cristóvão, homem alto e de voz forte. Carregando na sua frente, de dimensão modesta, uma cruz, com o Jesus pregado...



…Creio que uma boa parte de quem não abria as portas, neste domingo de Páscoa, era fundamentalmente por vergonha da sua pobreza.
Estou convencido, por aquilo que assisti, que tais famílias não tinham sequer dinheiro para comer, quanto mais para dar dinheiro e amêndoas ao padre, que com elas durante o ano nada repartia...



Um conjunto de amigos foi chamado a um almoço, lá para os lados das Olaias, na casa da Nelinha. Esta grande amiga foi (é), uma das “Miúdas” da minha rua, do velho Bairro das Furnas que, um dia me fez um pronto “xó pra lá”, quando lhe procurei roubar um beijo, debaixo da figueira, que, existia no seu quintal. Mas deixemos isto para outra ocasião.



Continuando; Na chegada a casa, depois dos beijinhos e abraços e, certamente, tendo em conta a aproximação do período da Páscoa, alguém ofertou a esta querida amiga, um pacote com variados e diferentes tipos amêndoas.
O gesto foi muito admirado, dando para ver, as ditas cujas, “partirem”, de forma “acelerada”, do recipiente em que foram colocadas.



Bonita foi a controvérsia que originou na apreciação das diferentes variedades, de tão apreciado e gostoso produto de torrefacção ou caramelização de frutos secos, ou com outros recheios.

Dizia uma. Ah… gosto muita das amêndoas torradas…
Dizia outra…Eu gosto daquelas que têm no recheio licor ou chocolate…
Retorquiu outra….Ah… eu também gosto muito de amêndoas, mas não arrisco comê-las, só chupa-las, por via da minha placa dentária…



Mas, o mais importante, foi alguém se ter lembrado das amêndoas oferecidas ao padre, no período da Pascoa, nas casas quando benzidas, do nosso velho Bairro.



Como era bonito o compasso (andamento), no domingo de Pascoa, no velho Bairro das Furnas!
Lembro-me que, uma semana antes, começavam os preparativos do povo. Os muros e as escadas das velhas casas eram caiados. Os ripados dos quintais, virados para a frente, eram arranjados e pintados quanto bastasse. Aproveitava-se para podar as flores. Tudo que era restolho ou lixo era retirado. Uma ou outra peça de roupa, a custo, quiçá ao rol, era comprada.



Ao tempo, todos primavam por vestir o que melhor conservavam. Aproveitando para estrear, nesse domingo, uma ou outra peça de roupa. As janelas eram engalanadas com colchas e outras coberturas das camas, por sinal bem garridas. Os crentes, tudo bem tratavam para receberem nas suas casas, Jesus pregado na cruz.



Era pela manhã que se ouvia o som constante da sineta, a anunciar o compasso, acionada pelo Sr. José – o jardineiro -. Que trazia vestida uma opa vermelha.
A atrás, de traje igual, - o sacristão -, o Sr. Cristóvão, homem alto e de voz forte. Carregando na sua frente, de dimensão modesta, a cruz com o Jesus pregado.
O padre vinha atrás acompanhado de 2 miúdos. Estes, vestidos com trajes em acordo com a cerimónia. Um transportava o incensário, o outro, transportava o balde da água benta, lá dentro o espargidor. O padre apresentava-se de batina branca, com as mãos escondidas pela estola, de cor verde, colocadas sobre a barriga.
Adultos e miúdos, estes, bem desinquietos, finalizavam o cortejo.



As casas, cujos donos as queriam ver abençoadas, tinham a portas abertas. O sinal que era dado ao sacristão, para o sacerdote entrar.
No interior da casa, sobre a mesa, havia sempre um prato com algum dinheiro e, amêndoas.



Aleluia, Aleluia… dizia o padre.
Estendendo a cruz para permitir que o crente beijasse os pés do Senhor.
Aleluia, Aleluia… repetia o sacristão.
Seguia-se a bênção, ao mesmo tempo que o seu ajudante movimentava o incensário, purificando o lar com o incenso queimado, proveniente de uma qualquer árvore aromática.
Por fim, o dinheiro era recolhido pelo padre. Na rua, as amêndoas oferecidas, eram atiradas aos miúdos que, se empurravam para as apanhar.



As portas das casas que se encontravam fechadas, a este costume religioso, havia sempre vizinhos algo criticadores, dizendo não raras as vezes:



…Olha aquele não é crente…
…Aqueles ali são contra a igreja…
…Caramba…a porta abre-se a toda a gente…
…Olha …aquele, não deixa a mulher e a filha beijar o Jesus…



Creio que uma boa parte de quem não abria as portas, neste domingo de Páscoa, era fundamentalmente por vergonha da sua pobreza.
Estou convencido, por aquilo que assisti, que tais famílias não tinham sequer dinheiro para comer, quanto mais para dar dinheiro e amêndoas ao padre, que com elas, durante o ano nada repartia.



Assim era, o compasso no Domingo de Pascoa, no meu velho Bairro das Furnas.



Nota: Agradeço à Clarisse Caetano, à Helena Ferraz e à Manuela Silva as dicas que me deram, pois essas dicas o texto não seria tão “rico” em termos históricos.



A foto do cruzeiro foi montada, pois tinha pessoas na sua frente. Mais uma vez agradeço à Clarisse Caetano por permitir as alterações na foto que dispensou.

sexta-feira, 23 de março de 2012

HISTÓRIAS DO MEU VELHO BAIRRO DAS FURNAS XVI

…É PÁ…ESTE É O MEU O RÁDIO…
…Mais tarde, venho a perceber que, ao instalarem o dito copo, bem cheio de água, em cima do aparelho de rádio, não só permitia cortar as interferências da locução da distante Rádio Moscovo, como, eventualmente, não seria detectada (a locução), pelas carrinhas de escuta da polícia política (PIDE)...

…É com muita pena que, o rádio, já não tenha reparação. Mas, digo-te Raul, …enquanto viva, será considerado e estimado, como no passado foi por 3 homens, do meu velho Bairro das Furnas…
Na oportunidade de uma agradável conversa, com a sempre amável Clarisse Caetano, grande amiga desde a infância, irmã do Alípio e do Cataré, não menos amigos, que, quando em miúdos, moravam, no nosso velho Bairro das Furnas, mais precisamente na casa de esquina, ao meio da Rua Eng.º Gomes de Amorim, que tinha o nº 23.
Como quem come cerejas, conversa puxa, conversa, de entre muitas lembranças de cenas por nós vividas ou, conhecidas de antanho, uma história acontece.

Sabes Raul….Deixa que te diga; Eu era muito pequenina. Talvez tivesse 7/8 anos de idade. Mas já me dava, para interrogar a minha querida mãe. Resposta não as tinha na maior parte das vezes, sobretudo quando as respostas se tornavam, para ela, complicadas.

Como ficava curiosa, quando ouvia, em alguns dias da semana, já noite dentro, o meu pai (também) Raul, com o Sr. Manuel da Julvira e, ainda, com o Sr. Desidério, que morava na rua dos Plátanos e tocava guitarra, a conversarem baixinho…

…Em outros dias, também via que, um deles (creio que era apenas o Sr. Desidério) lia livros e jornais que, depois, religiosamente os guardava...
…Ainda, dias havia, não percebia o porquê, que, junto ao velho rádio, com o volume do som muito baixo, estes 3 homens atrás citados, com os ouvidos quase “colados” ao mesmo, optavam por ouvir alguém com a “voz”, algo roufenha, a troco da música.

…Isto hoje está com muitas interferências…Dizia o meu pai.
…Oh Julieta… Oh Julieetaaaa… trás um copo com água...

A Julieta, como sabes, era o nome da minha adorada mãe. De princípio ainda pensava, que o meu pai o pedia para beber a água. Não era. O então copo com água era, para ser colocado bem cheio em cima do rádio.
Mais tarde, venho a perceber que, ao instalarem o dito copo, bem cheio de água, em cima do aparelho de rádio, não só permitia cortar as interferências da locução da distante Rádio Moscovo, como, eventualmente, não seria detectada (a locução), pelas carrinhas de escuta da polícia política (PIDE).
O pouco volume do som do velho rádio, também visava não permitir as escutas dos bufos, que, abundavam no Bairro. Diga-se…também estes, sempre na espreita de movimentos, protestos e posturas, das gentes contra o regime.

Uma vez…Raul…ouvi dizer em surdina, que, os “polícias” sem farda, tinham acabado de prender uma jornalista muito famosa entre os trabalhadores portugueses (Maria Lamas). Observei que o meu pai, calceteiro de profissão, ficou triste e deveras zangado.
Repetidamente dizia aos filhos:

…Não digam na rua, seja a quem for, do que se passa cá em casa…
…Cuidado com “esta” aqui ao lado…querendo identificar a D. Virgínia, mãe da Celeste.

Era verdade, que todo este secretismo me deixava curiosa, mas nós filhos, nada dizíamos… Nem sequer percebíamos o que se passava. No meu caso o interesse era, preferencialmente, dado às brincadeiras com as bonecas de trapo. Os meus irmãos começaram a trabalhar, no caso do Alípio, como ajudante de caixeiro e, o Cataré, como mecânico de automóveis e, não estavam nada interessados no que o meu pai escutava ou ouvia ler.

Uma outra vez,
acrescenta a minha interlocutora, o meu irmão Alípio, pelo susto que lhes pregou (aos 3 homens) ao entrar de “rompão”, sem prévio e qualquer aviso, pela porta de acesso à minha casa pelo quintal, deu azo a que o meu pai, em espontânea gritaria, com a aparente concordância das assíduas visitas. Dissesse:

…Se tornas a fazer isso, podes crer que te dou um enxerto que jamais te esquecerás na tua vida…
…Tu, (virando-se para a minha querida mãe) não o defendas, senão…

Infelizmente o meu pai morreu muito novo. E com a sua morte, tudo em minha casa se modificou. O velho rádio desapareceu, certamente entregue a algum prestamista ou penhorista, servindo o dinheiro apurado para fazer face à vida que passou a ser mais sofrida.
Também as visitas, daqueles que foram (eram) seus amigos, acabaram. Certamente não deixaram de ouvir a rádio Moscovo e, de ler jornais e livros que, os educavam politicamente, mas se a ouviam e o faziam, era em outra casa, não na minha!
Também… Raul…,a D. Julieta, minha querida mãe, anos mais tarde me abandona fisicamente.

Contudo a vida continua. Quando já mulher, casada e mãe de um filho, a vida já me é menos madrasta. Sou feliz. Trabalhava no já extinto Fundo Fomento da Habitação, lá para os lados da Av. 5 de Outubro.
Saía do emprego por volta das 17,30 horas e, como sempre gostei de andar a pé, sobretudo nas tardes frescas do verão, aproveitava, ao atravessar as ruas e avenidas, espreitar, observar, como quem não tivesse qualquer pressa, tudo o que as montras dos estabelecimentos comerciais ofereciam, aos passantes como eu.
Como animada e cativante estava a narração, não tive coragem de interromper esta “miúda” do meu velho bairro, mesmo quando observei que, os seus olhos irradiavam mais brilho.
Olha Raul! …Se a memória não me falha, 3/4 anos depois do 25 de Abril de 1974, num qualquer dia útil que, não sei precisar, já no final de uma tarde em que o sol teimava em não “fugir”, quis o destino, deparar, na montra do alfarrabista, misturado com outros artigos de variadas quinquilharias, algo que, durante muitos anos, me foi familiar e, considerado na minha velha casa uma preciosidade pelos 3 homens aqui já referidos.

Virada para a montra, com a mistura de dúvidas, os meus olhos brilharam de espanto com o que acabara de presenciar. Na minha casa, quando miúda, havia um rádio igual. E reparei, que este, também tinha 1 dos seus botões que não se enquadrava, por desigual dos restantes. Será o mesmo?

Olha! …Não fui de modas e pergunto ao velho caixeiro:
…Posso ver aquele rádio?
Agora, curiosíssima, vejo disfarçada, no tampo do velho rádio, de cor de nogueira clara e já debotada, a nódoa feita pelo copo de água, que, ali em tempos, o meu pai colocava. Também, lá estavam as válvulas, as mesmas válvulas grandes e pequenas, que eu tanto cobiçava. É pá…Era o meu rádio!

E pronto… Raul. Como deves calcular, custasse o que custasse, o meu velho rádio tinha que vir para a minha nova casa do meu novo Bairro das Furnas.
Hoje, não consigo ouvir a Rádio Moscovo, não porque não gostasse de a ouvir.
Com muita pena minha, o rádio, já não tem reparação. Mas, digo-te Raul, enquanto eu viva, será considerado e estimado, como foi por aqueles 3 homens no passado.

quinta-feira, 22 de março de 2012

A MINHA VIAGEM Á GUINÉ

A PARTIDA
Este parte,Aquele parte,

E todos,Todos se vão,
Oh terra ficas sem homens,
Que possam cortar o pão.

Corria o mês de Março de 1967, no Centro Cripto do Quartel-general (QG), em Lisboa, entre três cabos e dois sargentos, quis o destino, que fosse eu a decifrar a mensagem que ditava a minha mobilização para a Guiné, ficando incorporado no Batalhão de Artilharia 1914, composto por três Companhias Operacionais e uma de Comando e Serviços, já em trânsito no Regimento de Artilharia Costa (RAC), em Parede, Carcavelos.
Não me espantou! A situação era mais que previsível para os jovens militares da minha idade.

Dou a notícia em casa à minha mãe, à namorada, hoje minha mulher. Com o meu pai, na altura internado no Centro de Saúde do Telhal, despedi-me com um abraço e um beijo, sabendo que era incerto encontrá-lo de novo com vida, por mim, que parto para o incerto, ou por ele, tendo em conta a sua debilitada saúde.

Após o curto período de férias, a 7 de Abril de 1967, um dia antes do embarque, já no quartel em Parede, entre dezenas de militares, procuro o op. cripto Justo, companheiro das noites de Lisboa, também ele mobilizado, na Companhia de Comando no mesmo Batalhão. Conheço o furriel de transmissões de nome Cavaleiro.
Aqui, além uma outra cara já conhecida. É-me indicado o Sargento a quem tenho que me apresentar.
…Onde andou rapaz? ….Não fez a instrução de aperfeiçoamento operacional (IAO), devia cá estar há um mês…!
Pergunte no QG….(Quartel General), foi a minha resposta.

Depois, foi arrumar na bagagem o camuflado distribuído e sair para jantar.Dia 8 de Abril de 1967, no cais de Alcântara, em Lisboa, despeço-me da família que me acompanhou ao embarque. Segue-se a formatura. Um emproado oficial superior e sua comitiva fazem a revista da praxe, o embarque das tropas sucede-lhe. Ao som da fanfarra militar e do acenar dos lenços, o paquete Uíge largou amarras. A Torre de Belém fica para trás, a ponte sobre o Tejo já não se vê, a terra é coisa sumida, os olhos há muito que estão rasos de água.
Tive a sorte de não ser colocado nos lugares do navio que outrora eram destinados às cargas. O meu camarote suportava oito beliches duplos. Não tive preferência da cama, uma qualquer me serviu para descansar e dormir.
As refeições foram tomadas em refeitórios, outrora salas de jantar para passageiros em 3ª classe.
Os lugares destinados às outras praças, os porões, eram degradantes. As mesas de madeira que tinham lotação para uma vintena de militares, estavam colocadas ao comprimento dos porões. Os beliches, também em madeira, acompanhava-os na altura. Os vomitados do enjoo eram constantes, a limpeza deveras precária, que, em conjunto com a falta do banho diário, o cheiro era nauseante, asfixiante. O barulho dos motores, etc., o ambiente naqueles locais era insuportável.


Durante os oito dias (mais três que o normal por avaria num dos motores) que a viagem durou, foi neste contexto que, os jovens militares, fizeram a sua vida no navio.
Inconformados com o destino, no convés, uns passeavam, outros conversavam e, ainda outros, jogavam ou viam jogar às cartas.
Uma ou duas vezes fizemos exercícios de salvamento em caso de naufrágio. Os peixes voadores, que, quase sempre acompanharam o barco, eram também motivo de entretenimento.

No dia 14 do mesmo mês, chegamos já noite alta e, amedrontados, ao destino para o qual fomos obrigatoriamente mobilizados. O pior estava para vir……a guerra.
Aqui o sofrimento a todos tocou!

O REGRESSO
NEM TODOS, E DIFERENTES

Tens em troca órfãos e órfãs
E campos de solidão
E mães que não têm filhos
Filhos que não têm pais

A tarde já vai alta.
Sem fanfarra e sem lenços a acenar, soa a sirene do navio. São menos os que partem naquela primeira segunda-feira do mês de Março de 1969. Não são os mesmos (meninos) homens de outrora, a guerra tornou-os diferentes.

Ficam para trás as águas barrentas, o navio já vai distante. Na ânsia da partida, não tive tempo para me despedir daquela terra de cor vermelha, do seu cheiro, das árvores centenárias, dos pássaros, das bolanhas, dos nenúfares, do seu magnífico pôr-do-sol, do silêncio das noites estreladas, do seu povo. Imagem que a guerra não conseguirá apagar.

Dos ausentes, em tempo, “Em nome da Pátria”, através de um qualquer oficial subalterno, naquela que foi sua morada, a notícia da morte. A família e os amigos choram a sua sorte.Com a data de cinco meses antes, a mim, e aos demais que me acompanham nesta turbulenta “viagem”, é-me entregue um “papel verde”.
“O Comandante Militar atesta o seu apreço pelos serviços prestados á Pátria na Província da Guiné”.
Aos caídos em combate ao meu lado, aos que ficaram para a vida inteira mutilados ou estropiados, não sei se a “Pátria” também lhes atestou o seu apreço.


Agora, as mesas e beliches, nos porões do Uíge, pelo seu uso, não se notam que são de madeira, negra é a sua cor. Os vomitados do enjoo já não importam. A limpeza precária e a falta do banho diário, o barulho dos motores, pouco ou nada incómoda. Repete-se a vida no convés. Só nas conversas se observam exceções, são de contentamento e alegria.
Todos acordam cedo naquela manhã de 9 de Março, a brisa do mar gela-me a cara, os meus olhos já avistam a terra que me viu nascer. Uns choram, outros abraçam-se, procuro um lugar, como muitos, na amurada do navio. Já vejo o “meu” rio Tejo e os “cacilheiros”. Todos estrategicamente se calam, para após a passagem da ponte, dizerem em uníssono……JÁ PASSOU.

O navio prepara-se para atracar, aqui, além vêm-se cartazes….Estou aqui Manuel….., Leiria. Esperamos por ti…….Família Santos. Aqui……Massarelos Presente. Os gritos de alegria com o desembarque comovem. Mães, Pais, Filhos, Mulheres, Noivas, Amigos, todos se abraçam. A nuvem negra parece ter passado e, o sofrimento acabado.

Quartel do RAL 1 nos Olivais. O aeroporto de Lisboa está por perto, entregamos o que resta dos fardamentos. Despeço-me dos meus camaradas com um até breve. Vou para casa onde a família me espera. A guerra, essa, estupidamente, durou mais cinco anos.

Nota: As quadras foram (são) cantadas pelo Zéca Afonso
Não sei de quem é a letra.

domingo, 11 de março de 2012

DUAS HISTÓRIAS DE UM DIVERTIDO MIUDO DO MEU VELHO BAIRRO DAS FURNAS XV

Naquele sábado à noite, actuava no Sete-Rios, uma banda, cujo vocalista era uma jovem bem bonita e muito graciosa no acompanhamento musical. Encantava tudo e todos, mas falhava no rock-and-roll. Musicas que nós queríamos ouvir e dançar. Sobretudo o João Alfaro.
A mãe do João dava pelo nome de Maria Alfaro. Para os vizinhos era conhecida por “Maria do Carvão”. Teve 4 filhos. 2 Meninas e 2 Rapazes – a Lurdes, o João, o Vítor e a Clara Alfaro -. Esta última filha, ainda não era nascida aquando das ocorrências mais à frente traduzidas. Esta Senhora, enquanto moradora no Bairro da Boavista, era vendedora de carvão, razão pela qual, quando veio morar para o Bairro das Furnas, é identificada por “Maria do Carvão”. Tinha casa na Rua dos Freixos, mais propriamente 2 casas abaixo onde morava o barbeiro e, também “enfermeiro”, o Eugénio.

As datas dos acontecimentos, infelizmente, já não me ocorrem, mas seguramente foi na década dos anos 60. Ouvia-se na rádio, frequentemente, o Joselito a cantar. Miúdo de nacionalidade espanhola, que encantou tudo e todos com a sua voz. Um dos seus grandes êxitos foi a “Campanera”. Que muitos, miúdos e graúdos, o acompanhavam a cantarolar.

O João Alfaro, meu grande amigo, companheiro de escola, também adorava cantar. Quem se lembra dele em miúdo, sabe do que escrevo. O João andava sempre a cantarolar e, não se pense que cantava mal. À época, a sua voz, acompanhava bem o timbre melódico das canções de êxito popular. Não me é difícil recordar este “puto”, a imitar o Joselito, quando cantava a Campanera.

Uma das vezes, o palco da cantoria, foi na entrada do velho bairro, mais propriamente no jardim da praça. O João apresentava-se em jeito e na “pose de artista”. Ora com as mãos bem perto do peito, ora, uma delas, fechada, junto à boca a “substituir o microfone”.
Foi muito gratificante vê-lo a “actuar” para nós amigos e companheiros. No final do “espectáculo”, entre risos e aplausos, vaidoso, sorridente de alegria, com uma vénia, agradeceu. Que saudades meu velho!

Por qué has pintado en tus ojeras
La flor del lírio real?
Por qué te hás puesto de seda
Jay, campanera! Por qué será?



Numa outra vez, o êxito foi muito maior. Já tínhamos 17/18 anos. Passou-se no Sete-Rios, clube situado num velho edifício, em Sete-Rios, onde naquela época, proliferavam os bailaricos, sobretudo aos fins-de-semana. Edifício que hoje sustenta alguma nostalgia ao verificar-se todo emparedado e ao abandono.
Parece que estou a ver todo o seu interior.
Logo na entrada, a sala. Muitas cadeiras em seu redor a acompanharem as paredes. Ao fundo um alto palco. Também havia alguns grandes espelhos pendurados.

Estávamos no auge do rock-and-roll, o Elvis Presley era o “grande” ídolo da rapaziada. Todos gostávamos de dançar ao ritmo das suas músicas.
Naquele sábado à noite, actuava, no Sete-Rios, uma banda, cujo vocalista era uma jovem bem bonita e muito graciosa no acompanhamento musical. Encantava tudo e todos, mas falhava no rock-and-roll.

Eu dançava com uma empregada doméstica linda de “morrer”. Quando acabei, procuro oferecer à minha companheira, no bar, que se situava no lado esquerdo da entrada, algo refrescante. Mais à frente, reparo que o João, estava junto do palco a falar com a vocalista, certamente, pensando eu, a protestar tendo em conta a falha por não se ouvir tocar as canções/músicas do “ídolo”. ...Quanto... enganado estava.

O João queria cantar. O João Alfaro, para além de querer mostrar os seus dotes, queria colmatar, naquela noite de sábado, a falha da vocalista em termos do rock-and-roll. E o seu protesto não foi em vão. No intervalo foi vê-lo no palco a dançar e a cantar à capela:

A-wop-boh-a-loo-wop-a-woh-bam-boom
Tutty frutty, ah, rutty
Tutty frutty, ah, rutty
Tutty frutty, ah, rutty

Muito bom. A restante letra foi cantada num “inglês” cuja tradução não existia e ainda hoje não existe. Mas que foi muito apreciado e aplaudido, não tenham a menor das dúvidas.
Era um miúdo muito divertido do meu velho Bairro das Furnas.
Aquele abraço companheiro. Tenho saudades de te ver.

Raul Pica Sinos
Nota: A foto do João Alfaro é no tempo da escola primária