sexta-feira, 23 de março de 2012

HISTÓRIAS DO MEU VELHO BAIRRO DAS FURNAS XVI

…É PÁ…ESTE É O MEU O RÁDIO…
…Mais tarde, venho a perceber que, ao instalarem o dito copo, bem cheio de água, em cima do aparelho de rádio, não só permitia cortar as interferências da locução da distante Rádio Moscovo, como, eventualmente, não seria detectada (a locução), pelas carrinhas de escuta da polícia política (PIDE)...

…É com muita pena que, o rádio, já não tenha reparação. Mas, digo-te Raul, …enquanto viva, será considerado e estimado, como no passado foi por 3 homens, do meu velho Bairro das Furnas…
Na oportunidade de uma agradável conversa, com a sempre amável Clarisse Caetano, grande amiga desde a infância, irmã do Alípio e do Cataré, não menos amigos, que, quando em miúdos, moravam, no nosso velho Bairro das Furnas, mais precisamente na casa de esquina, ao meio da Rua Eng.º Gomes de Amorim, que tinha o nº 23.
Como quem come cerejas, conversa puxa, conversa, de entre muitas lembranças de cenas por nós vividas ou, conhecidas de antanho, uma história acontece.

Sabes Raul….Deixa que te diga; Eu era muito pequenina. Talvez tivesse 7/8 anos de idade. Mas já me dava, para interrogar a minha querida mãe. Resposta não as tinha na maior parte das vezes, sobretudo quando as respostas se tornavam, para ela, complicadas.

Como ficava curiosa, quando ouvia, em alguns dias da semana, já noite dentro, o meu pai (também) Raul, com o Sr. Manuel da Julvira e, ainda, com o Sr. Desidério, que morava na rua dos Plátanos e tocava guitarra, a conversarem baixinho…

…Em outros dias, também via que, um deles (creio que era apenas o Sr. Desidério) lia livros e jornais que, depois, religiosamente os guardava...
…Ainda, dias havia, não percebia o porquê, que, junto ao velho rádio, com o volume do som muito baixo, estes 3 homens atrás citados, com os ouvidos quase “colados” ao mesmo, optavam por ouvir alguém com a “voz”, algo roufenha, a troco da música.

…Isto hoje está com muitas interferências…Dizia o meu pai.
…Oh Julieta… Oh Julieetaaaa… trás um copo com água...

A Julieta, como sabes, era o nome da minha adorada mãe. De princípio ainda pensava, que o meu pai o pedia para beber a água. Não era. O então copo com água era, para ser colocado bem cheio em cima do rádio.
Mais tarde, venho a perceber que, ao instalarem o dito copo, bem cheio de água, em cima do aparelho de rádio, não só permitia cortar as interferências da locução da distante Rádio Moscovo, como, eventualmente, não seria detectada (a locução), pelas carrinhas de escuta da polícia política (PIDE).
O pouco volume do som do velho rádio, também visava não permitir as escutas dos bufos, que, abundavam no Bairro. Diga-se…também estes, sempre na espreita de movimentos, protestos e posturas, das gentes contra o regime.

Uma vez…Raul…ouvi dizer em surdina, que, os “polícias” sem farda, tinham acabado de prender uma jornalista muito famosa entre os trabalhadores portugueses (Maria Lamas). Observei que o meu pai, calceteiro de profissão, ficou triste e deveras zangado.
Repetidamente dizia aos filhos:

…Não digam na rua, seja a quem for, do que se passa cá em casa…
…Cuidado com “esta” aqui ao lado…querendo identificar a D. Virgínia, mãe da Celeste.

Era verdade, que todo este secretismo me deixava curiosa, mas nós filhos, nada dizíamos… Nem sequer percebíamos o que se passava. No meu caso o interesse era, preferencialmente, dado às brincadeiras com as bonecas de trapo. Os meus irmãos começaram a trabalhar, no caso do Alípio, como ajudante de caixeiro e, o Cataré, como mecânico de automóveis e, não estavam nada interessados no que o meu pai escutava ou ouvia ler.

Uma outra vez,
acrescenta a minha interlocutora, o meu irmão Alípio, pelo susto que lhes pregou (aos 3 homens) ao entrar de “rompão”, sem prévio e qualquer aviso, pela porta de acesso à minha casa pelo quintal, deu azo a que o meu pai, em espontânea gritaria, com a aparente concordância das assíduas visitas. Dissesse:

…Se tornas a fazer isso, podes crer que te dou um enxerto que jamais te esquecerás na tua vida…
…Tu, (virando-se para a minha querida mãe) não o defendas, senão…

Infelizmente o meu pai morreu muito novo. E com a sua morte, tudo em minha casa se modificou. O velho rádio desapareceu, certamente entregue a algum prestamista ou penhorista, servindo o dinheiro apurado para fazer face à vida que passou a ser mais sofrida.
Também as visitas, daqueles que foram (eram) seus amigos, acabaram. Certamente não deixaram de ouvir a rádio Moscovo e, de ler jornais e livros que, os educavam politicamente, mas se a ouviam e o faziam, era em outra casa, não na minha!
Também… Raul…,a D. Julieta, minha querida mãe, anos mais tarde me abandona fisicamente.

Contudo a vida continua. Quando já mulher, casada e mãe de um filho, a vida já me é menos madrasta. Sou feliz. Trabalhava no já extinto Fundo Fomento da Habitação, lá para os lados da Av. 5 de Outubro.
Saía do emprego por volta das 17,30 horas e, como sempre gostei de andar a pé, sobretudo nas tardes frescas do verão, aproveitava, ao atravessar as ruas e avenidas, espreitar, observar, como quem não tivesse qualquer pressa, tudo o que as montras dos estabelecimentos comerciais ofereciam, aos passantes como eu.
Como animada e cativante estava a narração, não tive coragem de interromper esta “miúda” do meu velho bairro, mesmo quando observei que, os seus olhos irradiavam mais brilho.
Olha Raul! …Se a memória não me falha, 3/4 anos depois do 25 de Abril de 1974, num qualquer dia útil que, não sei precisar, já no final de uma tarde em que o sol teimava em não “fugir”, quis o destino, deparar, na montra do alfarrabista, misturado com outros artigos de variadas quinquilharias, algo que, durante muitos anos, me foi familiar e, considerado na minha velha casa uma preciosidade pelos 3 homens aqui já referidos.

Virada para a montra, com a mistura de dúvidas, os meus olhos brilharam de espanto com o que acabara de presenciar. Na minha casa, quando miúda, havia um rádio igual. E reparei, que este, também tinha 1 dos seus botões que não se enquadrava, por desigual dos restantes. Será o mesmo?

Olha! …Não fui de modas e pergunto ao velho caixeiro:
…Posso ver aquele rádio?
Agora, curiosíssima, vejo disfarçada, no tampo do velho rádio, de cor de nogueira clara e já debotada, a nódoa feita pelo copo de água, que, ali em tempos, o meu pai colocava. Também, lá estavam as válvulas, as mesmas válvulas grandes e pequenas, que eu tanto cobiçava. É pá…Era o meu rádio!

E pronto… Raul. Como deves calcular, custasse o que custasse, o meu velho rádio tinha que vir para a minha nova casa do meu novo Bairro das Furnas.
Hoje, não consigo ouvir a Rádio Moscovo, não porque não gostasse de a ouvir.
Com muita pena minha, o rádio, já não tem reparação. Mas, digo-te Raul, enquanto eu viva, será considerado e estimado, como foi por aqueles 3 homens no passado.

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