domingo, 29 de agosto de 2010

BAIRRO DAS FURNAS VII

… PARTIR O RIPADO Á AMÉLIA… NÃO SE FAZ

Sorte a minha de não partir no canastro o que quer que fosse. Já assim não aconteceu com (o ripado) a Amélia. Que em monumental “chavascal”, fez do acontecimento noticia de “1ª página” no meu Bairro das Furnas.

O triciclo era de modelo inglês, encontrado no lixo pelo meu pai. Com a intenção de o restaurar responsabilizou um homem dado à bricolage. Pai da minha sobrinha Madalena e meu cunhado. Deu-o como presente, já quando pronto, a esta sua 1ª neta, tinha ela 3 anos de idade.

O triciclo, aos meus olhos e a muitos outros olhos dos rapazes do meu Bairro das Furnas, sobretudo aos da minha rua, era lindo. Era estonteante a vontade de o conduzir, em possui-lo. Não havia muitas crianças no Bairro que tivessem o privilégio de terem triciclos e, como aquele muito menos. Era o único modelo existente. Tinha o assento comprido pintado de vermelho, as rodas eram grandes e estavam pintadas de preto. A roda da frente era mais alta que as detrás e, entre estas, sobre o eixo que as seguravam, também pintada de vermelho, estava fixada uma tábua com sítio próprio para a colocação dos pés, permitindo aos miúdos mais crescidos a opção de utilizarem tal “velocípede” com uma maior velocidade, comparativamente aquela que tinham a pedalar na posição de sentados.

Rapazola, já na escola, 3 ou 4 anos mais velho da idade da minha sobrinha, o período da tarde era dado a brincadeiras. Aproveitando, sempre que possível, pela hora da sesta da menina, furtar despercebidamente tal “velocípede”, no intuito, com a malta mais chegada, desenvolver acções de destreza e de mestria, em velocidade, nas ruas do bairro.

De todo o modo, é sabido que os triciclos, mesmo grandes que fossem, não tinham travões. Os “espigadotes” quando os utilizavam e necessitavam de parar deixavam de pedalar ou em alternativa, se a velocidade fosse maior, a solução era forçar os pés à “roçadura” pelo asfalto, ou mesmo forçar o seu estatelamento na “pista” quando os pés estavam descalços.

O habitual “velódromo” era na rua que começava junto ao Centro Social e terminava, uns metros antes do ripado do quintal da Amélia, no início da rua dos Choupos, no lado Este do bairro. Rua com uma inclinação considerável, sobretudo até meio. Do lado direito da via existia uma pequena faixa de terra com chorões plantados. A cor destas plantas era amarela ou rosa. A seguir, em paralelo com a plantação dos chorões, existia uma sebe cuja altura variava entre 3 a 4 metros, com ramos erectos, pendentes e cobertos por espinhos que davam como “fruto” uns grãos de vermelho vivo (Pyracanta) que ao mastigá-los depressa eram cuspidos pelo amargo de boca que faziam, mas indispensáveis para as “batalhas” de arremesso através dos pequenos tubos de ferro. Esta sebe servia de vedação às hortas e aos viveiros de jardim que, o Sr. Zé, sob orientação do Fiscal Costa, cuidava primorosamente, sendo que os chorões, serviam de escape para travagens do “velocípede”, sobretudo, na hora das provas, quando a “pista era invadida” por alguns passantes.

.Mesmo assim, para que a velocidade não fosse tão vertiginosa, o local das partidas começavam a meio dessa rua, no espaço que dava acesso à rua dos “Lés-Lés” e onde morava também o Sr. Caixinha que era revisor da CP. Ficando situada a meta no final dessa rua, mais propriamente no cotovelo que dava acesso à Rua dos Choupos. Hoje essa rua dá pelo nome de Costa Mota e a Rua dos Choupos, passou a ser o Largo Calouste Gulbenkian.

Acontece que uma das vezes a adrenalina estava no auge. Este rapaz vaidoso e seguro da sua mestria e destreza na condução de tal veículo, entendeu colocar a partida no ponto mais alto da descida. E não contente pediu, aos demais que o assistiam, que o empurrassem até se perderem na corrida do acompanhamento. E mais não digo, a não ser que não consegui fazer a curva em cotovelo para a Rua dos Choupos, estatelando-me, claro está, no ripado da Amélia. E não queiram saber o sururu que foi na minha casa.

O desenho do triciclo é da autoria
Do autor. As fotos das planas são
Retiradas do Google

sábado, 1 de maio de 2010

NÃO HÁ SAUDADE QUANDO SE ESQUECE

Há muito que procuro redigir sobre meu pai. Tenho escrito algumas linhas soltas, enquadradas em contextos diferenciados, mas é tempo de o fazer mais e detalhadamente.

O vosso Bisavô, Avô e meu Pai – Adriano Ferreira Picasinos, era um homem alto, cabelo preto encaracolado, pele morena, de bigode em “^” cheio e de corte fino, com o rosto sempre barbeado. Era um homem formoso e bem-parecido, de poucas falas mas observador. Respeitador e apreciado por quem que com ele convivia de perto. Amigo da verdade e tolerante até se reconhecer. A vida deu-lhe inteligência e responsabilidades que soube assumir, mas não a alfabetização.

Responsável pela minha existência, a saber, por duas razões. Uma; obviamente pela co-responsabilidade da gravidez de minha mãe. A outra; porque a sua mulher, com dois filhos nos braços ainda crianças (Fernando e Helena) e pelas adversidades da vida à data (1945), não estava pelos “ajustes” que a vontade do Adriano, seu homem e companheiro da sua vida, se concretizasse com minha existência neste mundo.

I - PARTE COM OS BOLSOS VAZIOS CARREGADO DE DESGOSTO
Entre a data do seu nascimento, 23 de Novembro de 1898 e 30 de Setembro de 1919, data da incorporação militar no Regimento de Infantaria nº 7, em Setúbal, muito pouco se sabe e, na família, já não existe quem se lembre bem ou saiba.

Sustenta o Arquivo Distrital de Leiria, por fotocópia Paroquial, que o Sr. Adriano nasceu pelas 3 horas da manhã, no Casal da Faniqueira, na freguesia da Batalha no Distrito de Leiria e foi baptizado, a 12 de Dezembro de 1898, na Paróquia local da sua naturalidade, recebendo os apelidos apenas do seu pai Joaquim Ferreira Picasinos, proprietário. A sua mãe chamava-se Francisca Santana, agricultora e era natural do Casal do Alho. Os seus avós paternos tinham os nomes de Manuel Ferreira Picasinos e Maria Tomásia e os maternos Luís Carreira Frazão e Maria Santana.

Vê a sua mãe morrer de pneumonia aos 8 anos de idade. Seu pai, desgostoso por tal infortúnio, isola-se no seu quarto e recusa-se a comer, situação que lhe valeu a morte dias mais tarde. Fica órfão em conjunto com os dois irmãos mais novos. A irmã mais velha (Júlia), já casada, fica responsável pela custódia e pela tutoturia dos menores.

Quando o vosso Bisavô, Avô e meu Pai, parte da sua terra natal, aos 21 anos de idade, para responder à chamada da vida militar obrigatória, carrega grande desgosto ao aperceber-se que os bens deixados pelos seus progenitores foram vendidos, com a argumentação, falsa, que a venda dos terrenos justificou-se para pagar as dívidas então deixadas pelos pais. Dividas que sabia serem inexistentes, reclamando dos tutores o valor das suas partes, 7 jeiras (1 jeira 0,2 Hect.) dos terrenos existentes na localidade, de um terreno existente junto ao Pinhal de Leiria e duma várzea cuja localização ora se desconhece. Mas sem êxito!

Meses passados, sabe que a sua irmã mais nova, desiste de viver e, que o seu irmão sai do país a “salto” para o Brasil, voltando só a vê-lo uma única vez cerca de 25 anos mais tarde.

II - UMA CARREIRA MILITAR ALGO FRUSTANTE

Ingressado a 30 de Setembro de 1919, no Regi- mento de Infantaria nº 7, na cidade de Setúbal, quando acaba a recruta, a 17 Março de 1920, é colocado como soldado d
e 2ª classe no Batalhão nº 2 da GNR, em Lisboa. A 17 de Julho do mesmo ano, como soldado de 1ª classe, passa a prestar serviço no Batalhão nº 3 da GNR, em Évora.

Confrontado com o reduzido tempo da obrigatoriedade da prestação militar, a consequente passagem à disponibilidade, sem certezas na vida futura, reunindo as condições exigidas (robustez, firme, solteiro, e de boa morigeração e conduta) aproveita a possibilidade dada nesta instituição militar para a incorporação de soldados voluntários. E um ano depois, 01 de Junho de 1921, é considerado alistado e colocado na Secção de Adidos, em Lisboa, com contagem de serviço desde a data do pedido a 27 de Junho do ano de 1919. É destacado por um curto período na Ilha da Madeira, e recolocado mais tarde no Batalhão nº 2, em Lisboa

A saber pelo registos disciplinares na respectiva Caderneta, a vida militar não estava no seu horizonte: 7 Guardas disciplinares, 6 dias de detenção e 10 de prisão e algumas multas em dinheiro por não se apresentar à revista militar, (amnistiado pela Lei nº 1629 de 15/07/1924). Tais punições correspondem às seguintes actuações: por pouco vigilante no Posto da Guarda, por proferir palavras obscenas e um oficial por perto ter ouvido, por falta de limpeza nas botas e nas correias e por se ter apresentado, no quartel, depois de ter provado o vinho novo, em demasia, nas tascas a caminho. Castigos demasiado severos e desmotivadores para um jovem que procurou dar o seu melhor ao serviço da Guarda e da Pátria. Hoje, a verificarem-se tais situações, não têm o mesmo peso disciplinar que o regime militar defendia à época.

Passa à disponibilidade, como soldado, em 09 de Junho de 1922, com a obrigatoriedade de se apresentar periodicamente à revista militar. Agora, morador na Rua das Amoreiras nº 89, na Freguesia de Stª Isabel em Lisboa, a melhor sorte que encontrou neste ano, foi com a “criada de servir” de nome Georgina, que prestava as suas obrigações na residência de um oficial da instituição em que o Adriano se voluntariou. A D. Georgina, foi a sua mulher de sempre e mãe dos seus filhos.


III - DA G.N.R. PARA FUNCIONÁRIO
DA CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA

Saído da G.N.R. consegue colocação como assalariado fora do quadro de efectivos na Câmara Municipal de Lisboa. Aguardou cerca de 8 anos o concurso para entrar no quadro do pessoal. O que só veio a acontecer por despacho em 08/12/1930, então com a categoria profissional de Cabouqueiro.

A extracção de pedra para a construção civil e obras públicas e para o fabrico de cal, era uma indústria há muito
tempo em expansão na zona de Alcântara. Esta freguesia estava, também por via de outras fábricas, a industrializar-se rapidamente.

Para ganhar mais uns escudos, o vosso Bisavô, Avô e meu Pai, depois do trabalho na Câmara Municipal, ainda trabalhava na pedreira, com a função de manipulador de explosivos com vistas aos rebentamentos das encostas. Igualmente, depois de prestar serviço na “Fábrica das Colheres”, na Rua Janelas Verdes, à Junqueira, acompanhava-o a D. Georgina, sua mulher, tendo como função, igual a outras mulheres, partir as pedras que vinham a ser empregues nas calçadas na cidade de Lisboa. A vida é-lhes madrasta!

No Casal do Louro nº 30, Estrangeira de Cima, em Alcântara, arrenda ou constrói uma casa feita com chapas de zinco. Em 1933 regozija-se com o nascimento de uma menina, sua filha, minha irmã e vossa tia Helena. O Fernando, filho de uma outra relação da vossa Bisavô, Avó e minha Mãe, transporta com ele uma doença pulmonar e, com vistas à sua reabilitação, é entregue à sua avó materna, Dª. Damascena dos Santos, residente em Montachique.


IV - REPUDIAR O COMUNISMO E TODAS AS IDEIAS SUBVERSIVAS
PARA MANTER O VINCULO À FUNÇÃO PÚBLICA

A serra de Monsanto coberta por searas e pasto para o gado assume, com a ar
borização em 1934, o nome Parque Florestal do Monsanto. A edilidade onde o vosso Bisavô, Avô e meu Pai já era funcionário do quadro de efectivos, associada à filosofia da Lei da Casas Económicas de Salazar, com vistas a acudir à mísera situação dos habitantes dos bairros de lata que proliferavam pela cidade e, ainda para responder ao realojamento dos seus fu
ncionários, que também viviam em barracas, constrói nas periferias deste Parque, e em outros locais da cidade, um conjunto de bairros de construção definitiva e, outros, com o nome de “casas desmontáveis” de duração limitada a “meia dúzia de anos”.

Assim, em 1937, foi-lhe “oferecida”, pela Câmara Municipal de Lisboa, uma casa situada no então Bairro do Alvito, na freguesia de Alcântara. A renda mensal era de 300 escudos. Não pôde aceitar. O aluguer da casa era superior ao ordenado da sua categoria profissional. Nem somado com ordenado da D. Georgina, sua mulher, poderiam aguentar tal opção de vida. O sustento da família estava em primeiro lugar. A barraca no Casal do Louro, construída com chapas de zinco, sem luz e água, continuou a ser a “casa” de eleição.

Em 1939, ao cabo de 3 anos, termina a guerra civil de Espanha, mas começa a 2ª Guerra Mundial.
Aumenta, no país, a procura dos alimentos. O racionamento dos mantimentos de primeira necessidade intensifica-se. A fome também.

A 20 de Agosto do ano em referência, para que vosso Bisavô, Avô e meu
Pai pudesse manter o vínculo à função pública, teve que confessar numa declaração escrita por outrem, aludindo a Constituição da República de 1933, ser sua honra repudiar o comunismo e todas as ideias subversivas. Esta declaração, pelo facto do Sr. Adriano ser analfabeto, foi assinada a rogo por 4 testemunhas.

Como aos demais pobres da cidade, a vida não lhe sorri. A vida é-lhe madrasta. São desgostos atrás de desgostos, tristezas atrás de tristezas. O Manuel Custódio, filho do casal, muito desejado, morre de uma pneumonia aos 5 meses de idade. Como não fossem desgraças suficientes, é-lhe diagnosticado o princípio de uma doença que dá pelo nome de esclerose múltipla. E o vinho passa de prazenteiro às refeições, para começar a manifestar-se-lhe um “bom analgésico” para dores que assolam o corpo.


V - TER UM TECTO SÓ NA CONDIÇÃO DE CASADO
E RESPEITADOR DOS “BONS” COSTUMES

Em 20 de Janeiro de 1941, com a construção do Bairro
da Quinta da Boavista, na freguesia de Benfica, um bairro de “casas desmontáveis” feitas de lusalite, no outro lado da serra, e propriedade da C.M.L., veio resolver-lhe o problema da habitação.

Em tempo, o Sr. Adriano tinha declarado que não poderia aceitar a casa no Bairro do Alvito porque a renda era elevada. Registava o cadastro de pessoal da C.M.L. que tinha 2 filhos. Que não era casado, mas com a condição de ser seu propósito. Homem trabalhador e respeitador dos “bons” costumes do Estado Novo, ou seja: estavam criadas as condições para poder habitar uma casa tipo T2 no citado bairro que se dizia, à época, ser de “construção provisória”.

A casa, equipada com mobília de sala e quartos, tinha uma renda acessível (80$00/mês), mas a localização, obrigava todos os dias, para o pegar ao trabalho na zona de Alcântara, percorrer, a pé, uma distância de cerca de 4 km, por caminhos serranos de trajectos muito difíceis. Acompanhava-o na ida e no regresso, a sua mulher e a menina, sua filha, que frequentava a instrução primária na escola da Tapada da Ajuda.

Em 1 de Junho de 1941, para responder aos compromissos, contrai, aos 42 anos de idade, o matrimónio com a mulher da sua vida; a D. Georgina dos Santos, mais nova de idade 6 anos.

Segue-se, no mesmo dia, o baptizado da sua filha Helena. As cerimónias realizam-se na Igreja de Nª Srª do Amparo de Benfica. Foram testemunhas do casamento gente que não conhecia; o Conde de Bonfim, casado, proprietário e Presidente da Junta da Freguesia de Benfica. José Neves, casado e empregado da Igreja e ainda Laura Costa Cabral, viúva, proprietária.


VI - AUMENTA A FAMILIA
MUDAM OS LOCAIS DE TRABALHO

Com os melhoramentos das condições de habilidade; a casa, com sala de entrada, que também servia de cozinha, dois quartos, casa de banho com água corrente e luz eléctrica em paralelo com o horário da iluminação pública, e na circunstância com as novas funções profissionais da sua mulher, o Sr. Adriano procura dar novo rumo à vida.

Em rigor, no ano de 1942, a D. Georgina ganha a oportunidade de lavar roupa para famílias abastadas; E, através destas, é admitida
como servente de limpeza e lavadeira das roupas, panos e toalhas servidas nos ensaios laboratoriais, na Comissão Reguladora dos Produtos Químicos e Farmacêuticos, no Calhariz de Benfica. A menina, a vossa tia Helena, conclui no ano a seguir a escolaridade obrigatória.

A 2ª guerra mundial está no auge, embora Portugal não participe com o envio de tropas, contribui, para a Alemanha de Hitler, com minério (volfrâmio) e com géneros alimentícios de toda a qualidade, faltando aos filhos da nação todos produtos de primeira necessidade em especial: o arroz, o açúcar, o macarrão, a farinha para o pão, as batatas, o feijão, o azeite, etc. O sabão, o carvão e o petróleo eram “luxos” muito caros. Passavam-se horas nas filas para conseguir as senhas de racionamento; O contrabando proliferava. As pequenas hortas que o Sr. Adriano cultiva, nas fossas junto ao bairro, e no quintal na frente da sua nova casa, eram uma dávida nestes tempos de fome e miséria.

No ano de 1943, constroem-se ruas e avenidas no eixo Benfica – S. Sebastião da Pedreira. Pela madrugada procede-se à recolha dos lixos domésticos. Seguem-se as lavagens com agulheta. Durante o dia varrem-se os lixos que se acumulavam nas zonas de passeio. O vosso Bisavô, Avô e meu Pai, agora com a função de cantoneiro e em reforço do pessoal da limpeza, é colocado no Posto de Limpeza e Regas de Benfica. O tempo de trabalho são em 10 horas por dia, mas permitiu acabar com as caminhadas na serra de Monsanto, em direcção a freguesia de Alcântara.

A dureza do trabalho não lhe trás receios, mas sim dores musculares e na cabeça. Tal sofrimento, que é muito, é em parte apaziguado pela acção das ventosas, que a D. Georgina lhe colocava nas costas. No entanto pelas manhãs, a ingestão do bagaço e também do vinho, começava a ser mais frequente por ser a opção escolhida para o alívio de tais maleitas.

Mas do mal, o menos. A sua única filha (Helena), aos 12 anos de idade, consegue, nesta época de enorme escassez e carência de trabalho, colocação na Fábrica das Bonecas e Manequins. Nesta fábrica, existente na Rua Cláudio Nunes em Benfica, os escassos escudos que lhe pagam, vêm permitir ajudar a família nas míseras receitas salariais.
No ano de 1945, mais propriamente no mês de Maio, a 2ª grande guerra acaba! Mas não acaba a fome e a miséria. Os géneros de primeira necessidade haviam quase desaparecido. O povo, sobretudo na grande região de Lisboa, manifesta-se contra o racionamento do pão.

No entanto no final do ano em referência, mais propriamente a 13 de Dezembro, existem motivos para grande satisfação na casa do Sr. Adriano. A sua mulher, a D. Georgina, dá à luz um outro filho a quem lhe atribuem o nome de Raul. Começa, então, a haver razões acrescidas, para concorrer a uma nova casa com mais uma divisão (T3), num bairro que ia ser construído na Quinta das Furnas, lá para os lados do Jardim Zoológico.


VII - A VIDA NO NOVO BAIRRO
DA QUINTA DAS FURNAS

Com efeito, em 04/10/1948, com os parcos utensílios de cozinha, roupas e pouco mais, transportados pelos seus próprios meios, foi, com a família, estrear uma nova casa tipo T3, vazia de móveis, na Rua dos Plátanos nº 14, no novo Bairro da Quinta das Furnas. Neste novo bairro, inaugurado em Maio de 1946, as condições de habitabilidade eram rigorosamente iguais ao Bairro da Boavista, com excepção da renda que era de valor mais elevado, 110$00/escudos.

Na verdade havia outras diferenças por via das imposições querem do foro ético quer moral. A organização social regente defendia, que os moradores que administravam no bairro das Furnas, tinham níveis económicos e morais superiores, comparativamente com os diversos moradores dos bairros de “casas desmontáveis”. Pela negativa incluíam-se, os humildes e trabalhadores, moradores do bairro da Boavista. Certamente para justificar a obrigatoriedade do casamento civil procedido de católico, caso contrário, não eram socialmente bem aceites e a atribuição da casa era recusada.

Para responder, ou não a tais imposições, sobretudo do foro “ético”, em Fevereiro do ano de 1949, autoriza a sua filha Helena, então com 16 anos, a casar com o Fernando. O Fernando era manipulador de manequins e colega da Helena na Fábrica das Bonecas e Manequins em Benfica. Obviamente passou a habitar no quarto que é ocupado pela sua filha.

No entanto, nos dias que se passavam, o Sr. Adriano, rodeado de dificuldades, mesmo nos períodos em que a bebida encobria as tristezas do seu dia-a-dia, procurou sempre ser respeitador e educado para com todos os vizinhos e colegas, em especial para com os filhos.

É pela primeira vez avô por nascimento, em Janeiro de 1951, da sua neta Madalena, vossa prima em 1º e 2º grau. Meses depois, o quarto de dormir do vosso Avô e Pai Raul, sofre modificações pela necessidade de se construir um boliche com duas camas, com vistas a uma delas acomodar o mais recente membro da família. A prole aumenta, em Janeiro de 1955, por nascimento de uma outra neta a quem lhe põem o nome de Gina.

Em 1952, regozija-se com a entrada do seu filho Raul, para aprender as primeiras letras na escola primária do bairro. Dois ou três anos depois é a vez do vosso Bisavô, Avô e meu Pai, ser chamado, após a jornada de trabalho, a frequentar as lições ministradas na escola primária existente em Sete Rios, visando responder às acções de combate ao analfabetismo dos funcionários da função pública. Mas sem sucesso, o seu estado de saúde já não lhe permitia compreender, nesta área, o que é que fosse.
Os anos passam e a doença não o larga, pelo contrário, agrava-se o seu estado de saúde e é dado como incapaz para o serviço em Agosto de 1962. Internado na Casa de Saúde do Telhal, no Concelho de Sintra, despede-se do seu filho Raul, em Abril de 1967, quando este parte para a guerra colonial na Guiné-Bissau. O homem que não esqueço, morre a 08 de Dezembro de 1968. Foi vosso Bisavô, Avô e meu Pai.
Homem respeitador e apreciado por quem que com ele convivia. Homem amigo da família e tolerante com os demais.
Homem que pugnava pela verdade. Homem que assumiu e cumpriu todas as responsabilidades até se reconhecer.

1 de Maio de 2010
Fotos: Albúm de família
Caderneta Militar do meu pai
Medalhas CML atribuidas ao funcionário e meu pai
Outras Fotos: Google/C.M.L.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O MEU BAIRRO DAS FURNAS - VI

A minha mana foi responsável pela minha protecção e educação, quando miúdo, no espaço e no tempo do trabalho dos nossos pais. Encontramo-nos de tempos-a-tempos, se bem que lhe telefone amiúde, para saber do seu estado de saúde.

Rija como a nogueira, vencedora da mais cruel das doenças, sempre corajosa perante novas ameaças, mas a sua postura é triunfante. Sorridente, simpática, de coração sempre aberto, aos 77 anos de idade não deixou de ser uma mulher elegante e bonita. A sua presença e a sua beleza, registo com vaidade.

Não é natural do bairro, mas foram largos os anos que lá teve morada. Numa primeira vez, no velho bairro, por mais que uma década, em casa de minha mãe, com o seu marido e uma filhinha. Sai do bairro para uma casa nos Restauradores com melhores condições de habitabilidade, tempos mais tarde nasce-lhe mais uma menina.

Os anos “voam” como flechas, as filhas casam e quando, na companhia do seu marido, regressa pela segunda vez para cuidar da nossa mãe, as casas que vieram substituir as do velho bairro, já estão prontas. Hoje, no bairro, mora sozinha com saudades dos que partiram.

Raul, onde vamos almoçar?
Diz tu Lena!
Olha; vamos ao Carvoeiro, come-se bem e não é caro.
Interrogo-me com o nome deste restaurante, é-me familiar, mas nada digo e deixo-me conduzir pela rua de S. Domingos de Benfica que, dá acesso à Estrada de Benfica e ao Palácio Fronteira, onde funcionava a antiga Escola Comercial Pedro Santarém.

Como eu recordo o passado! Nesta rua, em frente à Leitaria do “Manel”, a drogaria já não existe. Mais abaixo o barbeiro também não. Mas a tasca do carvoeiro, que tinha atrás do balcão o taberneiro velho e chato, resistiu.

Lembro-me do tasco, quando era encontro de muitos trabalhadores que, nos finais dos dias e dos seus trabalhos, por ali confraternizavam, ou num qualquer jogo de cartas. Não só vendia vinho como tinha acoplada uma carvoaria que, mais tarde, com o desacostume do uso do carvão, foi convertida em “salão” de jogos dos matraquilhos. Hoje, apresenta o mesmo visual quanto à tasca, mas o espaço interior, o velho salão dos matraquilhos, foi transformado num modesto restaurante – Adega S. Domingos – o “Carvoeiro” como lhe chamam os que por lá moram há muitos anos.

Sentado numa das mesas a saborear o ensopado de borrego, procurava responder à conversa com a minha irmã, mas ao mesmo tempo recordava com nostalgia, este espaço, outrora palco de grandes jogatinas. Nunca consegui meter os golos na baliza adversária como com a perícia do Beirão. E quando eu na defesa, este meu amigo, que não sei da sua sorte, fazia rolar as bolas entre os três primeiros jogadores e chutava-as, de tal forma rápida, que não conseguia aperceber-me de que lados entravam na baliza.

Eu e a minha heroína, confortados e de barriga cheia, subimos a Rua de S. Domingos em direcção ao Bairro. Na entrada, encontramos uma velhinha que me olha interrogada, mas de pronto esclarece a minha irmã. Este é o filho da Tia Georgina, é o meu irmão Raul. Pois é! Responde a sujeita que no mesmo tempo me dá dois calorosos beijos, não sem antes dizer - que saudades tenho da tua mãe - parece que a estou a ver no carnaval, mascarada e divertida com todos…hoje já nada disso se vê por aqui.

Na minha frente vejo um prédio, que me parece uma torre. Outrora era o edifício da praça, que na sua frente tinha um ajardinado e um pequeno largo. No lado oposto um outro edifício onde funciona o Centro Extra Escolar e a Mocidade Portuguesa.

Como eu me lembro da Carmen, que na praça vendia as frutas e as hortaliças!
A Carmen era uma senhora alta e de viva voz.
Anda cá Raul…leva isto que comprou a tua mãe…leva com cuidado filho, não estragues!
Do lado esquerdo, mais uma banca de frutas e legumes. Por detrás, a padaria e o talho. A pequena mercearia ficava no lado direito para quem entrasse na praça. O edifício era servido com 3 ou 4 degraus e 2 portas, largas e gradeadas, entre os pilares.

Em direcção à casa da minha acompanhante, paro no Largo que homenageia a D. Mª de Lurdes Pais Gomes, assistente social e mestra da Casa do Trabalho no bairro. Recordo as festas que me fazia quando na idade escolar. Tenho pena que ainda não se tenha alcançado igual reverência com as professoras primárias, em especial a D. Maria Helena.

Enxergo a correnteza das casas existentes rua abaixo – Rua Costa Mota – outrora o sítio da horta e dos viveiros para jardim que o Sr. Zé (o jardineiro) cuidava diariamente. “Vejo”, em frente da sebe, algumas das ruas do velho bairro. No regresso ao passado, “vejo” no meu lado esquerdo, não as novas casas, o parque infantil, mas sim a rua onde morava o Sr. Caixinha, revisor dos comboios da CP e na parte de baixo o Rabaloto. Logo a seguir, a rua do “super-rato”, do Francisco Lambuças, e do barbeiro. “Vejo” a minha rua, a dos Plátanos e, já no fundo da correnteza, no princípio da Rua dos Choupos, “vejo-me” apoiado no ripado do quintal da Amélia. Hoje é Largo Calouste Gulbenkian.

Ao despedir-me da minha irmã, deparo, com saúde, o Zé Silva e o Rabaloto. Chamei pela “Bigodes”, grande amiga da minha mãe e visitante assídua da minha velha casa. Não me ouviu ou não estava. Estará certamente para uma próxima visita, à minha querida irmã e às minhas origens.

Fotos: Com o devido respeito
Do Bairro novo – Google Earth
Do Bairro velho – Do livro O Nosso Bairro –
Mª de Lurdes Pais Gomes e da Comissão de Moradores

domingo, 15 de novembro de 2009

O MENINO, OS MÉDICOS, O JARDINEIRO E O GAFANHOTO


Vamos deixá-lo aqui no parapeito da janela, disse o Sr. Joaquim. A lua quando chegar vai curá-lo e vais ver que, amanhã, quando te levantares e vieres espreitar o gafanhoto, ele já terá partido e, certamente a saltitar, pois foi curado pela lua por força do seu luar.

Já passaram, muitos, muitos anos. Tinha cerca de 6 anos, quando fui atormentado por uma febre reumática, levando-me ao internamento, durante 2 a 3 meses, no Hospital do Rêgo.

O mal principiou por fortes dores na garganta, febre muito alta, grandes inchaços, não só na zona do pescoço mas por todo o corpo, acompanhadas por dores nas articulações, sobretudo nos joelhos, que me dificultavam no andar.

Minha mãe preocupadíssima consultou o médico no Centro Social do Bairro, fornecendo-a de remédios, pois segundo o Sr. Dr., era uma amigdalite comum e típica nas crianças em idade escolar e nos adolescentes, só que, passados 3 dias, as maleitas e os inchaços no corpo, não apresentavam sinais de abandono, pelo contrário, agravaram-se, assim como se agravaram as dores, agora espalhadas por demais articulações.

Pobre mãe, de profissão servente de limpeza, quando se apresentou ao serviço no Laboratório onde operava a Comissão Reguladora dos Produtos Químicos e Farmacêuticos, situado no Calhariz de Benfica, chorava de tristeza e de dor pelo infortúnio do seu menino.

As colegas, doutoras, ao saberem as causas de tal pranto, uma delas, a Dr.ª Maria de Lurdes de Vasconcelos, de imediato à fala com o marido que, era interno no Hospital do Rêgo, pede-lhe rápida consulta e, nas horas que se seguiram, o médico, já no Bairro, sentenciou e transportou o menino, com vistas ao seu internamento, de pronto, no hospital onde trabalhava.

O Hospital do Rêgo, fundado em 1904, hoje Hospital Curry Cabral, estava (está) situado entre o Bairro Santos e as Av. Novas, paredes meias com a estação ferroviária do Rêgo. É uma das mais antigas unidades hospitalares do país, e sempre se distinguiu pela excelência do corpo clínico e pelo seu elevado grau de humanização e perfil tecnológico.

As enfermarias, à época, eram térreas e rodeadas de jardins, sobretudo por canteiros arrelvados, bem tratados, aqui ali, neles plantadas roseiras e outras flores e ainda algumas árvores que me pareciam serem de frutos.

Internado com outros doentes com idades muito superiores à minha, não podia, receber visitas dos meus familiares. As visitas só eram feitas pela Dr.ª Vasconcelos e pelo marido, e este último, por força da sua especialização naquele hospital para doenças infecto-contagiosas.

Tinha a oportunidade, de quando enquanto, pela janela da enfermaria, aberta pelas manhãs, por um curto período de tempo, de ver ao longe, para lá dos jardins, o acenar da minha mãe que, sorridente e feliz me enviava, transportados pelo vento, beijinhos ora arremessados pelas suas lindas mãos já enrugadas.

Dos poucos momentos que as janelas da enfermaria estavam abertas, também podia, não todos os dias, ver e chegar à fala com o Sr. Joaquim, o jardineiro e, acompanhar a sua arte no tratamento constante do canteiro ajardinado que, ficava logo abaixo do parapeito da janela. Ele respondia às minhas perguntas, sobretudo nos cuidados a ter com as roseiras, pois no quintal da minha casa, lá no Bairro, minha mãe também as tinha plantadas.

Num desses dias, quando no momento da faina do Sr. Joaquim, não gostei de ver este meu novo amigo esborrachar um gafanhoto que se alimentava, nas pétalas, numa das rosas. Eu adorava a bicharada e, era comum transportar em caixas de fósforos vazias; lagartixas, cigarras, besouros, gafanhotos e outros bicharocos que apanhava pelas árvores do bairro e mesmo fazer deles, com a restante miudagem, trocas por “bilas” e tampas de caricas, com vistas a engrossar o pequeno saco de pano que sempre me acompanhava nos bolsos das calças.

O bom homem, ao aperceber-se da minha tristeza, procurou desculpar-se, dizendo que não era sua intenção esborrachar o gafanhoto, mas sim fechá-lo na mão para me oferecer, mas com medo que fugisse, se tinha descontrolado na força ao apertá-lo. Acrescentando que não me preocupasse, pois ele voltaria a saltar e a voar, explicando:

Vamos deixá-lo aqui no parapeito da janela. A lua quando chegar vai curá-lo e vais ver que, amanhã quando te levantares e vieres espreitar o gafanhoto, ele já terá partido e certamente a saltitar, pois será curado pela lua por força do seu luar.

E assim foi. Pela manhã do dia seguinte constatei, satisfeito, que o gafanhoto tinha “abalado” e provavelmente já “curado”. Nunca mais vi, o Sr. Joaquim, a maltratar os bicharocos visitantes das suas flores, nos lindos jardins do hospital, que tão bem zelava.

Imagens e fotos:
Do Hospital – Flickr/Yahoo
Do Laboratório já desactivado – Paulo Ferro/cidadamialx/Google
O Gafanhoto – Google/Desenhos animados

terça-feira, 10 de novembro de 2009

O MEU CARRO DE LATA

DIGAM LÁ SE NÃO TÊM INVEJA DOS SABERES E DO TEMPO

Onde vais? Dizia-me, da porta da entrada da casa, a minha mãe.
Vou dar uma voltinha com o meu carro, respondi.
Qual carro? Pergunta-me com a sua voz já com os decibéis acima do volume considerado normal.
O carro de transporte que eu fiz – respondo quiçá meio feliz meio a medo, afastado quanto bastasse - mostrando-o dependurado pelo arame que lhe servia de volante, pois tinha dúvidas que os seus lindos olhos azuis, não ficassem arregalados e consequentemente as suas mãos “trabalhassem”, quando se abeirasse por perto do “engenheiro”, já com a construção pronta a rolar no asfalto da rua onde vivia.

Dá cá o carro e vai ao vinho para o jantar do teu pai!


Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
O céu no olhar, dum puto.

A taberna do Sr. Manuel ficava na entrada do bairro, mais propriamente num dos lados do Pavilhão da Praça e tinha ligação à mercearia que também era dele. O balcão era de mármore a todo o comprimento e dava-me, em altura, pelo pescoço. As pipas estavam encostadas às paredes, mesas e bancos não haviam dada a sua pequena dimensão. A restrição à entrada dos miúdos não acontecia, mas só era possível a permanência no tempo do atendimento.

De garrafa na mão, com meio litro de vinho para o jantar do Adriano, meu pai, venho em correria rua abaixo, pois não queria deixar de apresentar, enquanto era dia, o meu novo “modelo” de transportes de mercadorias aos outros putos do bairro.

As caricas brilhando na mão
A vontade que salta ao eixo
Um puto que diz que não
Se a porrada vier não deixo

Mas em que consistia tal relíquia?

Este meu carro de “pesados” era construído com 4 caixas de latas de graxa redondas, que faziam de rodas ligadas em eixo, sendo o chassis composto por duas caixas de latas de conserva de atum rectangulares, tudo ligado por arame. Por fim levava à altura da barriga, uma gancheta às rodas dianteiras a fim de o poder manobrar.

O carro podia levar 3 caixas de latas de conservas, mas não mais, senão, “abarrigava” com o peso e, arrastava pelo chão. Era preferível fazer um atrelado, apenas com duas rodas a trás e engatado ao carro da frente, como qualquer TIR de hoje.

Duas das caixas da graxa que iam servir de rodas, foram-me dadas pelo Sr. Joaquim, o sapateiro, fruto das conversas em algumas tardes que, sentado no parapeito da janela que rasava o chão do passeio, o via na arte a trabalhar e na esperança que a graxa depressa se esgotasse.

Era muito pequena a oficina. Estava situada na Rua das Furnas, mesmo na entrada do bairro. Lá dentro, a um dos cantos, a máquina de cozer, de resto, as paredes eram cobertas de prateleiras com sapatos de sola (poucos), também de pneu ou borracha (muitos), outros devidamente restaurados, já usados, mas prontos para vender a gente certamente muito modesta. Os outros apetrechos eram: Facas bem afiadas, lixas, cola, escovas, bem como uma serie de sevelas que estavam devidamente penduradas. Uma lamparina para derreter as pomadas em barra, tintas e as graxas.

No caixote da graxa lá de casa fui encontrar duas caixas quase vazias, encontrando a solução para as duas rodas que faltavam. Na verdade raras eram as engraxadelas, os meus sapatos eram amarelos, de pele de vaca (?) curtida, os da minha mãe eram alpercatas, só o meu pai usava botas e era eu que as engraxava de quando em quando, mas com sebo, portanto era pouco provável, aos meus pais, darem pela falta das ditas cujas.

As latas de atum foram fáceis de encontrar nas estrumeiras, problemático era desengordurá-las. Era com areia e sabão com o devido cuidado, senão os cortes nos dedos eram certos. Quanto ao arame, foi encontrado nas cercas dos quintais, nas ocasiões em que os vizinhos estavam “distraídos”, caso contrário os estalos eram a dobrar, do vizinho e lá em casa.



Digam lá se não têm inveja dos saberes e do tempo!

Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens.




Quadras do poema - Os Putos de Ary dos Santos
O carro é construção do autor em 2009. Em miúdo fazia melhor

sábado, 7 de novembro de 2009

O MEU BAIRRO DAS FURNAS - V - QUEM BATE ASSIM LEVEMENTE, COM TÃO ESTRANHA LEVEZA








O Zé Koi, era à data, um rapazola de 16, 17 anos e, já alguns trabalhava.
De um pedaço de neve fez um boneco.

Sabemos que nos invernos em Portugal é natural cair neve lá bem no norte do país e, quando mais agreste, o centro, também é animado por este fenómeno. Só em condições muito particulares é que os naturais das outras regiões têm a possibilidade de contemplar tal fascinio como exemplo, os da região do sul.

Também nas ilhas dos Açores (Ilha do Pico) e na Madeira (Picos: Ruivo, Torres e Areeiro),com regularidade, cai neve nas partes mais elevadas. Mas em Lisboa são necessárias condições atmosféricas de frio muito adversas para que os lisboetas tenham a oportunidade de apreciarem tal encanto.




A história que vou contar decorreu à 55 anos, no ano de 1954, foi tal forma marcante a surpresa que ainda hoje recordo em pormenor. Foi na manhã do dia primeiro de Fevereiro, quando o meu bairro das Furnas em Lisboa e o país acordou coberto por um manto de neve.




Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria…
. Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!




De um punhado dela, o meu amigo Zé Koi, fez um boneco. Colocou tal feito no parapeito da janela do meu quarto. De seguida bateu nos vidros e escondeu-se no quintal, para que eu, miúdo, levasse a crer que a escultura era a causadora do feliz despertar. Eu nunca tinha visto cair neve, nem sequer na televisão, pois ainda não existia.




O Zé Koi era, à data, um rapazola de 16, 17 anos, e já a alguns trabalhava. Pelos seus afazeres profissionais saía muito cedo e chegava já com as ruas iluminadas pela luz dos poucos candeeiros existentes. Morava na mesma rua onde eu morava, na Rua dos Plátanos, lá pró princípio, no nº 4.






Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho…







O Zé Koi, era divertido mas algo reservado, foi educado pela sua mãe, junto com uma irmã, (creio que o seu pai morreu novo). Não dispensava grande atenção aos miúdos das outras ruas, ao contrário para comigo e para com os outros putos seus vizinhos. Concedia-nos grande empatia, talvez por sermos algo espevitado, reguilas, enfim miúdos de bairro, iguais a tantos outros que ali foram criados e cresceram, que logo a seguir à instrução primária, os seus pais os fizeram “saltar do ninho por prontos para voar”.







Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança…







O Zé Koi, tinha umas mãos de artista, de “escultor”. A sua profissão era a de carpinteiro/marceneiro e gostava de construir barcos em madeira, e quanto aos “clássicos baptismos” não havia discursos, musicas ou garrafas quebradas nos cascos. Mas não pensem que não faltaram acontecimentos nas aguas das picotas das hortas, plantadas junto das linhas dos comboios. São outras histórias que um dia contarei. Até lá esperemos que este inverno a neve volte a cair em Lisboa. E quem se lembrar do Zé Koi, que complete mais a história deste furniano




Quadras do poema Balada de Neve/Gil Vicente
vídeo da C.M.L.

sábado, 10 de outubro de 2009