quarta-feira, 24 de setembro de 2008

ÉRAMOS MUITOS NA MINHA "VIAGEM" PARA A GUINÉ

No dia 7 de Abril de 1967, no Aquartelamento de Artilharia Costa na Parede (Cascais), um dia antes do embarque das tropas, no objectivo de intervir na guerra na colonial, na província da Guiné-Bissau, teve lugar a formação e a entrega do guião ao Batalhão de Artilharia 1914, composto por 3 Companhias Operacionais e 1 de Comando e Serviços.

Antes, entre centenas de homens, avisto aqui e além uma cara já conhecida, camaradas da especialidade e outros companheiros oriundos da minha cidade natal, Lisboa.

É-me indicado o Sargento, a quem me apresento, que diz … ”onde andou rapaz?” …“não fez a instrução de aperfeiçoamento operacional (IAO)”…, …”devia cá estar há um mês!”…concluiu. Pergunte no Quartel-general! Foi a minha resposta. Depois, de assistir às cerimónias da praxe, foi arrumar na bagagem o camuflado distribuído e sair para jantar.

8 de Abril de 1967, cais de Alcântara em Lisboa, despeço-me da família que me acompanhou ao embarque, segue-se a formatura, um emproado oficial superior e sua comitiva fazem a revista às tropas, o embarque sucede. Ao som da fanfarra militar e do acenar dos lenços, o paquete Uíge larga as amarras.

Este parte, Aquele parte, E todos, Todos se vão.
Oh terra ficas sem homens, que possam cortar o pão.

A situação da despedida atormenta-me, não é fácil ver todo o aparato de tristeza que me rodeia. A Torre de Belém fica para trás, a ponte sobre o Tejo já não se vê, a terra é coisa sumida, os olhos há muito que estão rasos de água.

Tive a sorte de não ser colocado nos lugares do navio que outrora eram destinados às cargas. O meu camarote suporta oito beliches duplos. Não tenho preferência da cama, uma qualquer serve para descansar. As refeições são tomadas em refeitórios outrora salas de jantar para passageiros em terceira classe. Os lugares destinados às outras praças, os porões, (ao contrário dos oficiais e dos sargentos que seguiam em primeira e segunda classes respectivamente), são degradantes. Colocadas ao comprimento dos porões estão mesas em madeira, com lotação para uma vintena de militares, os beliches também em madeira, acompanha os porões em altura. Os vomitados do enjoo são constantes, a limpeza precária, que em conjunto com a falta do banho diário o cheiro é nauseante, asfixiante, o barulho dos motores, etc., o ambiente é insuportável.

Durante os oito dias (mais três que o normal por avaria num dos motores) que a viagem durou, foi neste contexto que os jovens militares faziam a vida no navio. Inconformados com o destino, no convés, uns passeiam, outros conversam e ainda outros jogam ou vêem jogar às cartas. Uma ou duas vezes fizemos exercícios de salvamento em caso de naufrágio. Os peixes voadores que quase sempre acompanharam o barco eram também motivo de entretenimento. Finalmente a 14 do mesmo mês, chegados ao destino para o qual fomos obrigatoriamente mobilizados. O pior estava para vir……a guerra.

Já noite com os demais camaradas d’armas cheguei a Tite, um dos principais aglomerados populacionais, no mato, ao sul desta província ultramarina, na região de Quinará, distando em linha recta, cerca de 30 quilómetros da capital, Bissau. Ou seja, Tite foi a localidade que em Janeiro de 1963, Amílcar Cabral fundador do PAIGC principia as acções de guerrilha contra as tropas portuguesas.

Com o passar do tempo apercebo-me mais do que me envolve na região. O Povo, seus usos e costumes, a grande variedade de espécies vegetal e animal. As chuvas, ao contrário no “continente”, começam em Maio, aumentando gradualmente até Agosto. Os relâmpagos, as trovadas em simultâneo, o pôr do sol lindíssimo, o cheiro, a terra vermelha, as arvores muitas delas centenárias, as aves, os repteis, os pombos verdes, as formigas d’asa, os incómodos mosquitos, etc. tudo tem a sua beleza, mas diferente do que estava habituado. No entanto nada disto faz esquecer a vida de Lisboa.

A 19 de Julho de 1967 assisto ao primeiro grande susto da minha vida, o inimigo equipado com canhões s/recuo e morteiros 82, durante cerca de uma hora flagela o aquartelamento, registando as NT no final da refrega apenas 3 feridos. As consequências materiais são de elevado prejuízo.

Os dias sucedem-se e a actividade operacional das NT desenvolve-se em terrenos que são adversos; cotas bastantes baixas, em grandes áreas alagadiças, não só na época das chuvas como em resultado das marés. O IN actua com grande mobilidade, conhece o terreno com pormenor. Está organizado militar, política e administrativamente em largas zonas territoriais. Com o apoio das populações, é forte, aguerrido e dispõe de um potencial de meios igual se não superior ás NT, só desequilibrado graças à actuação da Força Aérea.

No dia-a-dia, passo o tempo, com os demais, em constantes incertezas de vida. Só aliviadas pelas tertúlias organizadas entre a rapaziada, repastos acompanhadas de muita cerveja, quase sempre compostos pelas mercadorias que nos chegam dos familiares. Aqui e dali também me chegam notícias, uma delas bem marcante; a sorte de 500 habitantes da área de Lisboa que morreram em resultado das cheias que assolaram a cidade em Novembro deste mesmo ano.

Fotos:
Arquivo do Zé Justo
Google/Didinho
Poema:
Adriano Correia de Oliveira

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