sexta-feira, 7 de setembro de 2012

QUANDO OS MIUDOS DO MEU VELHO BAIRRO DAS FURNAS VIAM OS COMBOIOS PASSAR XXVII


…Via-me sentado, nos bancos corridos, com janela aberta, “sonhando” no seu andamento…
…Desapontados, pela proibição dos seus “sonhos”, as traquinices não se faziam esperar!...
…Denunciarmos quem na referida máquina de amendoins, colocava fichas metálicas na vez de moedas, estava for de questão…
…Já não fumegam as máquinas que puxam as carruagens...

Os comboios sempre me fascinaram.
Era de pé, em cima do muro, que, os olhava na sua passagem.
Fumegantes, cativava-me o frenesim da sua marcha.
O meu olhar não deixava de os acompanhar e, em cantoria ecoava, como alguém me ensinou…pouca terra, pouca terra, pouca terra.
Uuuuuuuuh, uuuuuuuh, “respondia a velha locomotiva”, como de um cumprimento se tratasse.
No seu andamento, nunca o meu sono foi estorvado. Habituei-me, noite dentro, a ouvi-los!
Faziam parte do meu dia-a-dia e, das crianças que, comigo brincavam no meu velho Bairro das Furnas.

A linha do comboio – Ramal de Sintra – Entre as estações de Campolide e, da Cruz da Pedra, mais junto a esta, existiam uma serie de desvios das linhas férreas, dando acesso à oficina, ficando esta, paredes meias, com o muro de pedra.
O casarão oficinal era enorme, comprido, construído em madeira.
Cinza escura era a sua cor.
Uma ou outra linha, nele entrava.
Trabalhava lá o “Chico”, morador no nº 11 da minha rua, em frente à minha casa.

A curiosidade era muita e, muitas foram as vezes que, pulei aquele muro, no fim das ruas do velho bairro, virado para o Monsanto.
Atravessei as hortas envolventes amanhadas e, conservadas verdejantes pelos ferroviários.
Sorrateiramente acercava-me, do casarão chamado “cocheira” dos comboios.
Subi, por vezes, as escadas das velhas carruagens ali estacionadas, certamente a aguardar reparações, ou já no fim da vida.
Então, via-me sentado, nos bancos corridos, com janela aberta, “sonhando” no seu andamento, quantas vezes interrompido, por um ferroviário qualquer.

…Que estás tu aqui a fazer? Interrogava-me!
Vim apanhar amoras, desculpando-me.
O colorido da boca e das mãos não o desmentia.
De seguida, o ferroviário, com o braço e, o dedo indicador, estendidos na direcção das silvas, lá ia dizendo:

…Vá. Vai-te embora. Vai apanhar amoras! Não voltes! Podes magoar-te. É muito perigoso andar por aqui…

Quantos destes avisos não foram respeitados, por mim e, pelos miúdos do meu velho Bairro das Furnas que, desapontados, pela proibição dos seus “sonhos”, as traquinices não se faziam esperar!

Nos calções, presa à cintura, a fisga.
Algumas das lâmpadas dos candeeiros suspensos nos postes da eletricidade, assim como parte das “canecas” brancas com fios enrolados, dificilmente ficavam de “pé”, por revanchismo à “vitimização” perpetrada pelos operários ferroviários.

A propósito, conta-me um conterrâneo que, o seu pai, serralheiro, trabalhador na fábrica das cervejas, trazia para casa, como trabalho extraordinário, com vistas ao seu polimento, várias anilhas de ferro, das quais algumas tinham o diâmetro igual às moedas de 50 centavos (1 croa).
O nosso conterrâneo, como não podia deixar de ser, era chamado ao “trabalho” que, sorrateiramente algumas, com satisfação, desviava para os bolsos.

De facto foram muitas as vezes que, o Chefe da estação dos comboios, da Cruz da Pedra, com a bandeirola de cor vermelha enrolada no pau, nos observava a manusear a máquina existente naquela estação e, carregada de amendoins descascados.
Também, não foram raras as vezes que, nos interrogava, para denunciarmos quem na referida máquina de amendoins, colocava fichas metálicas na vez de moedas.

A operação consistia do seguinte:
Esperava-se que, os comboios parassem na estação.
O Chefe estava obrigado a sair da bilheteira, para dar assistência aos utentes e ao maquinista do comboio.
Era o momento que, o nosso amigo sacava os amendoins que podia, introduzindo na máquina as anilhas ferro que, serviam na perfeição.

Empreendedor, o nosso conterrâneo, mais tarde, empacotava-os em pequenos cartuchos, e, em clara concorrência desleal com a Ti Leonor, aos domingos, à porta do “jaleco”, a 1 escudo os vendia.

Confrontada com a “oposição” do fornecedor das “alcagoitas”, a troco de umas quantas fichas, a solidariedade dos amigos era muita.
A “rotação deste material”, rico em minerais, foi de tal forma que, quando havia miúdos por perto da estação, o Chefe, “para segurança dos amendoins”, não tinha outra solução senão fechar a estação, só a abrindo, quando as partidas dos comboios se verificassem.

Com o tempo tudo passa.
Na década de 50, os comboios apresentam-se mais modernos.
As carruagens deixam de ser de chapa e, de madeira, passam a ser de aço inoxidável canelado.
É também nesta década concluída eletrificação do ramal.
A velocidade é bem maior.
Tudo tem o seu tempo.
O muro, as hortas e, o casarão já não existem,
Já não fumegam as máquinas que puxam as carruagens.
Já não faz sentido o cantarolar …pouca terra, pouca terra, pouca terra...
O silvo, uuuuuuuh, uuuuuuuh, já não se houve.
Deixámos de ver e, de tropeçar nos corredores, com as gaiolas com patos, com galináceos, com as sacas cheias de produtos hortícolas, etc..
Nas máquinas, os amendoins descascados, foram substituídos por bolinhas multicolores de pastilhas elásticas e, mais caras.
Inclusive a velha estação foi demolida!
O Mundo pula e avança.


Foto nº 1 Montagem. Restantes fotos: Perdidas no Google.

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